Marcadas por processos criativos pouco tradicionais, produções contemporâneas realizadas por artistas negras, como Pontes sobre abismos, NoirBLUE e Kbela, revelam interseções entre linguagens, dispositivos e formatos.
Dandara Raimundo, Isabel Martins Zua, Lívia Laso e Daí Ramos em Kbela, de Yasmin Thayná. Foto: Alile Dara Onawale.
NoirBLUE – Deslocamentos de uma dança, de Ana Pi. Foto: Divulgação.
Pontes sobre abismos. Foto: Aline Motta.
O corpo negro que performa, fabula e forja futuros está na própria gênese do cinema negro. Entenda-se como “cinema negro” aqui mais uma categoria política do que estética, um gesto de demarcar a presença de corpos negros ocupando o lugar primordial na feitura de um filme: o da direção. Cabe, contudo, uma discussão mais ampla, e que ainda precisa ser feita, para aprofundar o que – quais obras e estéticas – constitui esse Cinema Negro.
Alma no olho (1974), primeiro filme de um realizador negro brasileiro a convidar sua negritude para o centro do ato cinematográfico, traz Zózimo Bulbul – diretor, ator, roteirista e produtor da película – (re)contando quatro séculos de vidas negras no Brasil por meio de um único corpo (o seu), um único cenário (um estúdio em fundo branco infinito) e a ausência de diálogos, contraposta à vibração dos sons e da trilha de John Coltrane. Um corpo frente a uma câmera comunicando uma experiência diaspórica.
Cinema, performance e artes visuais
Corta para 2018. Em produções negras contemporâneas, em especial as realizadas por mulheres, a performatividade não só mantém sua força, mas têm buscado um diálogo que ultrapassa tanto o específico da performance em si, quanto o do Cinema (aqui em maiúsculas para denotar um conjunto de regras que delimita o que é ou não um filme), tomando emprestado também dispositivos e processos criativos das artes visuais.
Assumidamente influenciado por Alma no olho, Kbela (2015), por exemplo, de Yasmin Thayná, abre, de maneira explícita, uma frente de diálogo com performances e intervenções de artistas negras. E não só isso. A própria encenação do curta-metragem mobiliza corpos performáticos. Cada cena constitui uma unidade de sentido em si, com potencial para ser apreciada isoladamente, fora do contexto do filme. “Exemplo disso é a performance Bombril (2010), de Priscila Rezende, indispensável para o universo de referências do qual Kbela se alimenta”.
Além da oxigenação própria de cada sequência, todas constituem e constroem. O resultado é um curta-metragem com duas linhas de força: uma disposta a diagnosticar as dores, traumas e neuroses causadas pelo racismo; outra comprometida em oferecer, por meio da própria obra, uma instância de cura e de fabulação do futuro. A obra circulou tanto em espaços tradicionais de cinema (Festival de Roterdã, Mostra Black Rebels), quanto em museus, tendo integrado a exposição Diálogos ausentes (2016), no Itaú Cultural, em São Paulo.
Corpo como suporte
Enquanto Kbela toma emprestado a performance para construir blocos de sentido, NoirBLUE – Deslocamentos de uma dança dá um passo em outra direção: ele mesmo é filme-acontecimento que transborda o específico de cada campo artístico. Apresentado pela diretora Ana Pi pela primeira vez no 19º Festival Artdanthé, em Vanves, França, a dança-performance ganhou uma bem-vinda existência cinematográfica ao ter sua “versão” fílmica exibida e premiada no 20º Festival Internacional de Curtas-metragens de Belo Horizonte em 2018.
No processo criativo para NoirBLUE – Deslocamentos de uma dança, Pi mobiliza a noção de corpo como suporte, fundamental para a performance, o teatro e a dança. Corpo negro que carrega memórias e que também exala futuridade. Mas não se trata de um corpo que dança e de uma câmera que registra a dança. Mais que isso: há cinema, visível no posicionamento da câmera e no deslocamento dos corpos pelo espaço, constituindo planos, não apenas takes. E na expressividade de uma narração cadenciada que, em vez de organizar e orientar a experiência, nos convida a nos aprofundarmos em uma personagem: Ana, a artista brasileira que viaja pelo continente africano, encontrando aproximações e reconhecendo distâncias. E há cinema também na consciência do poder que é mostrar e também esconder, na beleza que é encher a tela de preto ou de azul. E, por fim, na precisão ao trabalhar o tempo da espera pela ação e o tempo da própria ação.
Pontes sobre abismos
É cinema também Pontes sobre abismos, mesmo que a gênese e os suportes de exibição tenham encontrado maior respaldo e acolhida em galerias e museus. Idealizada e realizada por Aline Motta, a obra surge simultaneamente como vídeo-instalação – exibida na mostra Narrativas do Invisível (2016), no Itaú Cultural, em São Paulo – e como série fotográfica, sendo que uma das imagens integra a exposição Histórias Afro-Atlânticas (MASP e Instituto Tomie Ohtake).
Na sua vida cinematográfica, o curta Pontes sobre abismos constrói uma narrativa da formação racial brasileira, tendo como recorte a avó da artista em três telas – uma abordagem nada tradicional no cinema. O que na instalação se espalhava por três telas distintas, cada uma delas exibindo um filme “diferente”, permitia ao visitante decidir qual das três telas acompanhar. Já na sala de cinema, a obra passa a ser vista em uma só tela com três quadros e o espectador precisa se desdobrar entre estes. Ou seja, ele não controla mais o fluxo de sua apreciação, perdendo a possibilidade de determinar a direção de seu próprio olhar.
Dentro de um único suporte – a tela de cinema –, três filmes se desenrolam simultaneamente, formando um único filme que desaba à nossa frente como uma torrente de queda-d’água. No desfecho magistral, um leopardo ganha simultaneamente as três janelas sobre a tela, banhado pela narração da autora que “revela” o “assunto” do filme.
Também constituem exemplos das potências que residem na interseccionalidade entre cinema, performance e artes visuais outros curtas como Experimentando o dilúvio em vermelho, de Michelle Mattiuzzi; Elekô, do Coletivo Mulheres de Pedra; Limbo, de Anderson Feliciano. Em comum a todas as obras citadas: direção, processo criativo, encenação e corpo constituem um mesmo espaço-tempo. Uma matéria de igual importância.
Heitor Augusto é crítico de cinema, curador, professor e tradutor. Curador da mostra “Cinema Negro: Capítulos de uma História Fragmentada” e cocurador do Festival de Brasília (edições de 2017 e 2018). Além de ministrar oficinas regulares de crítica e cursos livres de história do cinema, mantém o site Urso de Lata (www.ursodelata.com), onde exercita uma escrita que explora as intersecções entre raça, estética e política.