Retrospectiva

Uma breve história dos anos 2010 na arte

Os anos 2010 não apenas viram a ascensão de novos e urgentes movimentos sociais – #BlackLivesMatter, Occupy, #FeesMustFall, Extinction Rebellion, #MeToo – mas também testemunharam o surgimento de uma geração de artistas ousados, novas feiras de arte, aplicativos de compartilhamento de fotos e o fim da trajetória do curador mais emocionante deste curto século, escreve Sean O’Toole.

Talvez a instalação de Kapwani Kiwanga, The Secretary’s Suite (2016), fosse uma elaborada peça de ficto-criticismo explorando as economias de oferta mostradas no anexo da 2016 Armory Show’s African Perspectives? E quanto ao brilho laranja envolvendo a instalação Untitled (Of Occult Instability) [Feelings] (2016-18), produzida por Dineo Seshee Bopape, com as dimensões de uma sala, sob a curadoria de Gabi Ngcobo na 10ª Bienal de Berlim em 2018? Ainda não? Bem, então certamente a evocativa ação de rua de Tracey Rose em 2015, na qual ela repetidamente gritou “Patrice – Lumumba!”, enquanto caminhava saindo de WIELS, um centro de arte em Bruxelas que mais tarde sediou a exposição de Koyo Kouoh, Body Talk: Feminism, Sexuality and the Body in the Work of Six African Women Artists (2015), que exibiu um vídeo da ação de Rose?

Como alguém pode resumir uma década sem aplainar sua complexidade e ignorar suas contradições? O listicle, uma forma anêmica de crítica de arte que surgiu nos anos 2010, certamente não é uma opção. Os dez artistas / curadores / marchands de arte mais importantes dos anos 2010! Oh, os egos feridos. As cinco obras de arte mais valiosas vendidas no começo da London Art Fair em 2013! Quem se lembra de 2013? Os dez mais valorizados artistas africanos que tiveram obras leiloadas em 2015! Não, espere, estaremos excluindo Irma Stern (1894-1966), a pintora expressionista sul-africana, cujas vendas em leilões totalizaram 92 milhões de dólares entre 2005 e 2015, fazendo dela a 9ª mulher artista mais valorizada a ter obras vendidas em leilões no mundo inteiro naquele período? Hum …Hum. Ok, vamos fazer uma lista das cinco exposições mais importantes que não tiveram Okwui Enwezor como curador?

Lembrar de Enwezor, que faleceu aos 55 anos em 2019, é fundamental para qualquer retrospectiva dos anos 2010. Suas digitais estão espalhadas por toda a década. Você se lembra de Rise and Fall of Apartheid: Photography and the Bureaucracy of Everyday Life, que em 2014 viajou para Joanesburgo, a cidade exposta de maneira tão proeminente em sua exposição feita basicamente de fotografias documentais? E quanto a All The World’s Futures, a mostra superlotada, mas ainda assim instigante, que Enwezor apresentou na 56a Bienal de Veneza de 2015, trazendo um conjunto de pinturas de textos serigrafadas e trabalhos ao ar livre em neon de Glenn Ligon, relembrando um caso de violência racial de 1964? O crítico Benjamin Genocchio, que mais tarde foi alvo do #MeToo por causa de seu trabalho na Armory Show em 2017, escreveu que a exposição de Enwezor foi uma “bienal morosa, feia e sem alegria”. Foi um refrão comum, que pareceu se esquecer de uma coisa fundamental: a exposição era uma elegia da nossa era morosa, feia e sem alegria.

Nem todas as exposições de Enwezor geraram discussões, muito menos atenção da crítica. Em junho de 2010, Enwezor supervisionou o projeto da exposição Events of the Self: Portraiture and Social Identity, no novo museu Walther Collection, no sul da Alemanha. Sua exposição multifacetada incluiu, entre outros, uma exibição coletiva do trabalho de 25 artistas contemporâneos, uma mostra dupla de retratos de Seydou Keïta e August Sander, e uma exposição monográfica do artista anglo-nigeriano Rotimi Fani-Kayode, cuja “subversão da tênue diferença entre a nudez e o nu” foi um ponto de deleite genuíno para Enwezor. Talvez você se lembre dessa exposição, uma gig freelancer para um mecenas rico, o colecionador Artur Walther, que, no entanto, viu Enwezor permanecer fiel a seu projeto de provincializar a história da arte ocidental, situando-a em um continuum mais amplo de práticas globais?

Um mês antes da abertura da exposição Events of the Self, em Neu-Ulm, a Fundação Beyeler, perto da Basileia, inaugurou a maior retrospectiva da obra de Jean-Michel Basquiat jamais feita na Europa. Em um obituário de 1988 sobre o pintor, o crítico Robert Hughes (outro cara branco com um megafone) descreveu Basquiat como um “pequeno talento” e um “bichinho de estimação selvagem para os brancos recém-cultivados”, cujos preços em leilões (300 mil dólares logo após sua morte) estavam superestimados. Em 2017, o colecionador japonês Yusaku Maezawa pagou a quantia recorde de 110,5 milhões de dólares por uma pintura sem título de Basquiat feita em 1982, que – para levantar um fato indiscreto, mas necessário – de longe excedeu o total declarado de vendas de arte africana em qualquer ano. Mas, espere, Basquiat não era um artista da Diáspora Africana?

Um mês após os trabalhos de Yto Barrada, Zanele Muholi, Berni Searle e Zwelethu Mthethwa (que foi preso em 2017 por matar a profissional do sexo Nokuphila Kumalo em 2013) terem sido exibidos em Neu-Ulm, o cofundador do Instagram, Kevin Systrom, tirou uma foto de um cachorro perto de uma barraca de taco no México. Ele depois fez o upload dessa foto em uma versão precursora do Instagram chamada “Codename”, intitulando-a “teste”. Fofo, um gênero meloso da internet, que está além das críticas, encontrou um novo lar. Em 2012, Systrom e seu sócio, Mike Krieger, venderam sua startup extremamente bem-sucedida para o Facebook por aproximadamente 1 bilhão de dólares em dinheiro e ações.

O Instagram foi lançado no mesmo ano que o Pinterest, e hoje faz parte de uma constelação de ferramentas que oferecem compartilhamento de imagens virtuais em troca de detalhes sobre o seu círculo de amizades, interesses de navegação e muito mais. A prática cultural onipresente de ir para a cama percorrendo a vida de estranhos impulsionou celebridades (lembra de JAY-Z e Beyoncé no Louvre em 2014?), revelou ilegalidades (a morte de Eric Garner em 2014, filmada por seu amigo Ramsey Orta e postada no YouTube) e fez nascer influenciadores (como o escritor Antwaun Sargent e o marchand Stefan Simchowitz, que se concentra em arte africana). Ela também enredou os usuários em um presente inescapável e perpétuo onde o voyeurismo e o consumo coincidem com o desempenho.

“Qualquer um que queira ir a público para começar a atuar na ágora da política internacional de hoje precisa criar uma ‘persona’ pública individualizada”, escreveu o crítico de arte Boris Groys em Going Public, uma coleção de ensaios publicada em 2010. Os métodos e táticas dos vários movimentos sociais, que ao longo dos anos 2010 reavivaram as possibilidades de desobediência civil através de ações sem liderança e lógica antipropositiva, sustentaram a especulação de Groys. Ao escrever, Groys estava interessado na maneira como a facilidade de acesso a câmeras digitais e equipamentos de vídeo, combinada com a plataforma global da internet, tinha “alterado a tradicional relação estatística entre produtores e consumidores de imagens”. A ascensão do smartphone, uma tecnologia onipresente, apenas amplificou essa sacada-chave: “Hoje, mais pessoas estão interessadas em produção de imagens que em contemplação de imagens”.

“Em face da infinita multiplicidade de arquivos digitais, a singularidade dos objetos de arte precisa ser reafirmada diante de sua disseminação infinita e incontrolável via Instagram, Facebook, Tumblr, etc.”, escreveu a historiadora da arte Claire Bishop na edição de setembro de 2012 da Artforum. Mas como exatamente o objeto de arte pode ser reafirmado? Através do envolvimento incorporado com o mundo desordenado de pessoas e coisas, arriscaria eu. Evitando o espetáculo da banana de Miami em favor da complexidade, o que certamente foi uma marca da magistral dOCUMENTA(13) de Carolyn Christov-Bakargiev. Lembra do brilho quente das pinturas de Etel Adnan e da assustadora instalação assombrada de Kader Attia, The Repair from Occident to Extra-Occidental Cultures?

“Como o curador de arte contemporânea expressa seu agir intelectual dentro do estado de `transição permanente´ em que a arte contemporânea existe hoje?”, questiona Enwezor, um verdadeiro apóstolo da força das exposições, em um ensaio de 2008 intitulado The Postcolonial Constellation. “Como o curador trabalha tanto no pensamento canônico como contra a essência desse pensamento, a fim de tomar conhecimento do pensamento artístico que lentamente se faz sentir, primeiro no campo da cultura, antes de parecer sancionado por críticos e instituições? Não tenho respostas específicas para essas questões”. Uma medida de sua vida e obra foi que Enwezor nunca parou de tentar adivinhar essas respostas através de reuniões temporárias de objetos e propostas de pensamento, que todos nós fomos convidados a testemunhar e com elas nos envolver.

Sean O’Toole é escritor da Cidade do Cabo e editor-colaborador da Frieze.

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