Os Países Baixos foram um dos impérios coloniais europeus mais beligerantes. Impulsionados pelo comércio e espalhados por quatro continentes, suas motivações imperiais mudaram o curso das vidas e das culturas de milhões de pessoas, da Indonésia ao Caribe. Nesta série, artistas e pessoas do campo da arte compartilham suas reflexões sobre como lidar com os legados desse império, nos Países Baixos e além. Nosso autor Heitor Augusto analisa a exposição “Afterlives of Slavery” no Tropenmuseum de Amsterdã.
Vista da instalação em Afterlives of Slavery no Tropenmuseum Amsterdam, 2019. Foto de ©KIRSTENVANSANTEN.
Cartela explica a trajetória de Tula, líder da resistência dos escravizados em Curaçao, proclamado herói nacional do país em 2010. Foto: Heitor Augusto.
A exposição Afterlives of Slavery aborda o passado colonial dos Países Baixos e sua permanência no presente. Mas tal esforço constitui um processo sólido de decolonização de um museu?
A exposição semipermanente no Tropenmuseum de Amsterdã, Afterlives of Slavery (“Vidas pós-escravidão”) pode ser inserida numa cronologia recente de tentativas de abordagens críticas à colonização e ao olhar colonial. Esforços similares podem ser encontrados nas contínuas exposições no subsolo do monumento Padrão dos Descobrimentos em Lisboa – que sediou obras de Rosana Paulino na exposição Atlântico Vermelho em 2017 – e em Histórias Afro-Atlânticas, que durante um semestre de 2018 tomou o MASP e o Instituto Tomie Ohtake em São Paulo.
Afterlives of Slavery tematiza o passado colonial dos Países Baixos e sua permanência no presente, endereçando sua atenção especialmente ao público local. Sensibilizar para a participação holandesa nas violências coloniais e no comércio transatlântico de escravizados parece ser um dos principais objetivos da exposição. Contudo, as condições de produção, o formato em grid, a limitação da amplitude do material em exposição, a escolha de um trabalho que intenta educar sem ameaçar e a quase total ausência de uma sala com trabalhos de artistas holandeses descendentes ou nascidos nas ex-colônias sugerem que certos assuntos ainda precisam ser discutidos. São um indício de que uma conversa sólida acerca de raça, racismo, colonialismo, fetiche colonial e artes tem muito a avançar no contexto holandês.
O acesso à exposição pode ser feito a partir de três pontos diferentes, e isso representa mais que um detalhe arquitetônico, pois influencia diretamente a experiência da visita e nos leva, inevitavelmente, ao questionamento de quão alcançáveis são os objetivos da Afterlives of Slavery.
Quem chega ao primeiro andar do suntuoso palácio a partir das escadas principais é recebido com um convite à celebração do Keti Koti (“as correntes foram quebradas”), que representa a abolição oficial da escravidão no Suriname e nas Antilhas Holandesas. Pendem do teto tecidos que celebram a independência ou retratam episódios importantes da história do país. Nas paredes, vemos cartelas que explicam o papel dos holandeses no tráfico de escravos. Contudo, a atração principal da sala é Keti Koti – Gebroken Ketenen, vídeo de Dorothy Blokland que chama a conversa para o presente ao expor o legado colonial deixado em milhares de nossos sobrenomes.
Por ser brasileiro, as conexões entre essa sala e a exposição Histórias Afro-Atlânticas surgem de forma natural. Ambas enfatizam a função exercida por tecidos e colchas para o povo preto como forma de expressão artística, bem como para contar suas histórias. A representação têxtil de Keti Koti no Suriname ecoa com os soteropolitanos por meio de Organizações de resistência negra – Ilê Aiyê (1995), de J. Cunha; com os beninenses por meio de Emblemes des rois Danxome Abomey (sem data); e com os norte-americanos por meio de duas obras de Faith Ringgold: Who’s Afraid of Aunt Jemima? (1983) e Subway Graffitti n. 2 (1987) – todas as quatro expostas no MASP e no Tomie Ohtake.
O segundo ponto de acesso leva o visitante diretamente para o centro da exposição, onde está acumulada uma grande quantidade de conteúdo num espaço pequeno. Divididos em minissalas de exposição, alguns dos tópicos abordados são criação da raça e constituição do racismo científico, estereótipos e fascínio pelo negro que entretém, além de manifestações músico-político-culturais como o Tambú. Completam o panorama entrevistas com acadêmicos, espaço para depositar perguntas, cartelas com informações acerca de figuras históricas relevantes, mapas coloniais e fotos que registram a existência dos chamados “zoológicos humanos”. Os esforços em cobrir uma ampla gama de questões podem indicar o quanto essas histórias foram apagadas do imaginário coletivo holandês.
Afterlives of Slavery é descrita como um “prelúdio à exposição sobre a história colonial dos Países Baixos, a ser inaugurada no Tropenmuseum em alguns anos”. Por isso mesmo o potencial por detrás de alguns dos conteúdos deve ser observado. A seção que aborda as reivindicações de ativistas para a “criação de mais espaços para perspectivas e ideias não eurocêntricas”, bem como a porção que joga luz na perniciosa tradição do Zwarte Piet (“Pedro, o negro”), podem representar um poderoso giro decolonial.
No terceiro ponto de acesso, a arquitetura do palácio induz o visitante a atravessar outras três exposições atualmente em cartaz no Tropenmuseum que investigam o Sudeste da Ásia, a Indonésia e Papua Nova Guiné, o que representa um significativo contraste com as abordagens curatoriais de Afterlives of Slavery. Iniciar a visita por esse ponto deixa uma sensação de frustração, pois a percepção é de que o olhar colonial permanece inalterado.
Um dilema reside na raiz de Afterlives of Slavery e em seu desdobramento daqui a alguns anos: como sensibilizar para o reconhecimento do empreendimento colonial como um fato violento que necessita de reparação, mas, ao fazê-lo, evitar negar a agência para subalternizados cuja produção artística passa pela dor, mas vislumbra a forja de futuros? Tal reflexão pode levar ao surgimento de uma possibilidade real de avistar as vidas dos nossos corpos racializados após aquela “instituição peculiar” chamada escravidão. Senão, um título como “Vidas pós-escravidão” não significará nada mais que um simulacro. Nesse prelúdio, a exposição parece ter o entendimento de que um mundo pós-colonial emergirá por meio do mero reconhecimento do passado colonial. Os debates raciais nos Países Baixos estão em estágio tão embrionário a ponto de que a simples admissão do empreendimento colonial é vista como uma conquista importante?
Essa discussão extrapola o contexto de uma única exposição e diz respeito à própria raiz do Tropenmuseum. Na condição de museu etnográfico, compartilha a mesma história de muitas instituições europeias de arte. Sua coleção não pode ser dissociada do empreendimento colonial nem de como arte e objetos que refletem culturas fizeram parte de um projeto amplo de “descobrimento”, classificação, hierarquização e subjugação. Do ponto de vista curatorial, é fascinante investigar como, no mundo contemporâneo, uma coleção construída através de violência pode ser mobilizada para a implosão do olhar colonial. Quais possibilidades residem inexploradas nos arquivos do Tropenmuseum? Quais esforços o museu tem assumido para rever criticamente a história de suas exposições?
Qualquer tentativa de decolonização que se queira relevante deve trazer para o centro as experiências e contribuições criativas de curadores negros dos Países Baixos e além. Para uma instituição de arte que aponta um interesse pelas vidas pós-escravidão, tais processos não podem ser evitados.
Heitor Augusto é crítico de cinema, professor e curador. Assinou a curadoria da retrospectiva Cinema Negro: Capítulos de uma História Fragmentada (FestCurtas BH, 2018), além de ter sido um dos curadores do Festival de Brasília (2017 e 18). Programou filmes para o Instituto Tomie Ohtake, MIMO – Festival de Cinema e Música e Mostra ABD – Fica. Além de ministrar cursos livres de história do cinema, mantém o site Urso de Lata (www.ursodelata.com), onde exercita uma escrita que explora as intersecções entre raça, estética e política.