O artista, curador e arte-educador relata detalhes de sua trajetória e relembra o lendário espaço O Oço/Galeria Cine e Sol.
Da esquerda para direita, foto 1: Um dos grupos nos quais o pai de Claudinei, Gumercindo Roberto, (ao centro, em pé) tocava. Foto 2: uma das formações do Paris 68 (da esq. para a dir.): Luiz Valentim, Marcia Madalone, desconhecido, Claudinei Roberto, Adalberto Dalba e Caio Babel. Foto: Arquivo pessoal. Foto 3: Claudinei Roberto durante ensaio no Teatro Sérgio Cardoso, com o ator e poeta Luiz Valentim ao fundo. Foto: Arquivo pessoal.
Há alguns meses, o artista, curador e arte-educador Claudinei Roberto da Silva guiou um pequeno grupo de amigos por uma caminhada a pé pelo centro de São Paulo, oferecendo uma espécie de história da arquitetura do centro da cidade e breves apresentações de obras de artistas contemporâneos em murais, grafites ou obras escondidas em espaços comerciais como bares e restaurantes. Um passeio ímpar como a conversa que segue.
C&AL: Você é artista visual e, ao mesmo tempo, tem uma prática curatorial e pedagógica. Quando e como a prática artística foi dando lugar aos processos de curadoria?
Claudinei Roberto da Silva: Muito antes de me imaginar cumprindo um percurso acadêmico, a educação tomou um lugar importante no centro das minhas prioridades e pensamento. Por motivos concretos, educação e arte sempre se interseccionaram em minhas práticas. Vivi durante toda minha infância e juventude sob o impacto da ditadura cívico-militar, instaurada por um golpe de estado no Brasil em 1964. Nasci em 1963 e vivi numa distante periferia da zona norte de São Paulo. No entanto, a reverência sincera à figura do (a) professor (a) era ainda uma realidade da qual eu, felizmente, participei.
Durante minha adolescência, parte da juventude à qual eu pertencia viu-se impelida, em maior ou menor grau, a militar contra o regime. Essa militância era exercida das mais diversas maneiras e organizada por instituições às vezes inusitadas. Por exemplo, meu irmão mais velho, Clóvis Roberto, tinha plena consciência de que seu cabelo no estilo “black power” era um símbolo de contestação e que ouvir James Brown era um desafio ao “status quo” branco e ao aparelho repressivo do Estado. Meu pai, Gumercindo Roberto, foi cantor de gafieira de bailes populares. Nesses ambientes também se elaborava um tipo qualquer de resistência ao regime.
Normalmente, quando se fala em militância, somos levados a pensar em um único aspecto dela, geralmente realizado por pessoas pertencentes a uma classe média branca. Mas o povo oprimido das periferias desenvolvia estratégias as mais diversas e preservar sua identidade e cultura era uma delas. Foi neste contexto que tomei contato com jovens que, como eu, buscavam, a partir das periferias em que viviam, desenvolver alguma atividade que desse maior sentido a suas vidas e ações.
Nossa formação era em geral voltada a ideias que implicassem um tipo qualquer de “transformação social” acionadas por um dispositivo coletivo. Uma roda de samba bastava. Esse ideal(ismo) era sempre coletivo e não tínhamos acesso à literatura engajada ou à teoria política revolucionária. Não dispúnhamos, é claro, das ferramentas do mundo virtual. O teatro amador que se praticava (muito) tinha cunho “pedagógico”, assim como a música e as artes plásticas.
Acreditávamos num papel protagonista do artista, num processo que não pretendia distingui-lo do público. Pensávamos na educação, formal ou não, como um instrumento necessário para transformação das comunidades em que vivíamos e as artes eram, por isso, “um martelo para forjar o novo”. Já nesta época achávamos que o artista devia ter o domínio de toda a cadeia de relações que envolvia sua obra, inclusive e talvez principalmente na maneira de “distribuí-la”, tornando-a acessível a todos. Não tínhamos a dimensão de mercado, éramos talvez ingênuos, mas essa inocência nos foi benéfica e creio que este início contaminou na raiz aquilo que vim desenvolver posteriormente.
Então, eu nunca distingui, nas minhas atividades, o fazer artístico das práticas pedagógicas e curatoriais. Veja, para as maiorias minoradas, a educação é tão vital quanto a arte, as festas têm um papel pedagógico, e nelas o oprimido exerce sua humanidade e projeta sua dimensão subjetiva. Entendi desde muito cedo que os vários aspectos do mercado precisam ser enfrentados por um artista que não poderia participar passivamente desse ambiente.
C&AL: Foi assim então que você se tornou arte-educador?
CRS: A decisão de optar por um curso de licenciatura em Educação Artística, que me facultasse a chance de lecionar, estava posta desde sempre. Educação e arte caminham juntas, ou deveriam, pois a relação de pertencimento vem do conhecimento e familiaridade com o objeto do nosso interesse, seja ele a arte ou outro qualquer. Tornar-me professor foi uma decisão de cunho político, mas também motivada pelo meu incipiente trabalho de artista. A importância que via na arte me obrigava a ensiná-la.
A primeira tentativa que fiz nesse sentido foi através do curso de licenciatura em Educação Artística de uma faculdade privada chamada Marcelo Tupinambá, nome que homenageia um grande músico brasileiro do Modernismo. Nesta instituição, tomei contato com a dança e a partir daí dediquei-me à criação e manutenção de um grupo de dança-teatro experimental chamado Paris 68, pelo qual passaram nomes como Maria Mommenshon, Anabel Andrés, Sueli Andrade, além de Adalberto Dalba, Caio Babel, Marcia Madalone e de uma dezena de outros que compuseram o grupo durante os dez anos de sua existência. Essa foi uma experiência muito importante que atravessou toda a década de 80 do século passado. Através da dança pude fundar um pensamento sobre o corpo que de outra maneira não teria existido. Eu creio que algumas das escolhas que faço como curador também estão lastreadas naquilo que sinto dos artistas sobre suas discussões (ou não) sobre o corpo.
C&AL: Dez anos de existência é um tempo bastante relevante para um grupo, não?
CRS: Sim. Essa foi uma experiência muito importante que atravessou toda a década de 80 do século passado. Através da dança pude fundar um pensamento sobre o corpo que de outra maneira não teria existido. Eu creio que algumas das escolhas que faço como curador também estão lastreadas naquilo que sinto dos artistas sobre suas discussões (ou não) sobre o corpo.
C&AL: Então, em seu processo de formação como arte-educador, você desenvolveu uma prática em dança-teatro experimental, como artista visual e como curador. Falando de sua prática curatorial: o espaço O Oço/Galeria Cine e Sol tem um papel importante na história da arte contemporânea em São Paulo. Como ele surgiu?
CRS: O projeto do ateliê OÇO foi a consequência “natural” das exigências éticas, estéticas e econômicas presentes à nossa formação. O OÇO foi a forma que encontrei para responder a certas demandas e inquietações que se tornaram concretas durante minha passagem pelo Departamento de Arte da Universidade de São Paulo. Foi lá que realizei minhas primeiras experiências como curador através do trabalho de um grupo de jovens artistas que compunham um núcleo chamado Olho SP.
Mas bem antes dessa experiência eu já vinha construindo um percurso e foi como artista que, observando e participando do cenário cultural da cidade de São Paulo, constatei que pessoas da minha extração social e racial conseguiriam uma inserção neste universo de arte de maneira bastante mais dificultosa. Por este “universo de arte” entenda-se uma ampla gama de relações que passam inevitavelmente pela produção da obra e a “sobrevivência” do seu autor, a educação – formação do público –, fruição da obra de arte via museu ou galeria pública e privada, colecionismo etc.
O ateliê OÇO teve vários momentos e vários endereços. Ele surgiu como resultado da necessidade de exibir uma produção que tinha dificuldade de emergir. Mais do que isso, de promover o debate e a pesquisa em torno dessa produção.
O objetivo do espaço sempre foi conferir dignidade às obras em exposições que também permitisse ao público uma aproximação maior com o artista sem as restrições impostas pela maioria das galerias e museus. Aulas, oficinas e bate-papos com artistas, curadores ou educadores eram parte do cotidiano do nosso trabalho. Muitos artistas passaram por lá, foram mais de 80 entre 2009 e 2015, período em que o projeto conheceu sua maior vigência. É nesse período que realizo de maneira mais sistemática uma pesquisa sobre arte afro-brasileira, ou negro brasileira.
O ateliê OÇO, que foi mantido sem patrocínio durante toda sua existência, foi um excepcional laboratório, uma plataforma de pesquisa e um reduto independente a partir do qual foi possível desenvolver uma experiência para alguns e para mim, imprescindível.
Artista visual e de performance por formação (e prática), Claudinei Roberto da Silva tem uma extensa experiência como curador, assinando projetos como a exposição O banzo, o amor e a cozinha da casa, Museu Afro-Brasil, São Paulo (2014), Audácia Concreta as Obras de Luiz Sacilotto, Museu Oscar Niemeyer, Curitiba (2015), o simpósio Presença Africana no Brasil, Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo (2015), e a 13a. Bienal Naifs do Brasil, Sesc Belenzinho, São Paulo (2017), juntamente com Clarissa Diniz e Sandra Leibovici.
Fabiana Lopes é curadora independente, baseada em Nova York e São Paulo, doutoranda em Estudos da Performance na Universidade de Nova York, na qual é bolsista do Corrigan Fellowship Program. Lopes tem interesse pela produção artística da América Latina e atualmente pesquisa a produção de artistas negros no Brasil.