A artista brasileira fala sobre as origens indígena e negra como marcas de seu trabalho e explica sua predileção pelo trânsito entre diferentes linguagens.
Corpografia do Pixo (2019). Foto Miguel Salvatore
"Sobreposição da história": performer Kerolayne Kemblin, plantação de cana no Lindeia, Minas Gerais, Brasil (2019).
Gê Viana vive São Luís do Maranhão, mas sempre volta ao povoado de Centro do Dete, onde nasceu, para o convívio com seus parentes e com a natureza. Muito de sua arte vem dessa fonte revisitada que reaparece em fotomontagens, colagens, pichações, performances, instalações, intervenções urbanas e rurais. Indicada para o Prêmio Pipa em 2019 e 2020, a artista leva para as ruas e galerias seu confronto com os traços persistentes da colonização.
C&AL: Você já mencionou em entrevistas que a descoberta de sua ancestralidade indígena se deu por meio de uma pesquisa artística. Poderia falar sobre seu posicionamento frente a essa origem? Essa fonte parece inesgotável em sua arte?
GV: A palavra “descoberta”, que você usa, carrega o peso da colonização, dessa falsa descoberta do Brasil, Pindorama. Existem gerações de tataravós, bisavós indígenas, que tiveram suas identidades reprimidas, mas não apagadas. Quando encontramos algum vestígio disso, é como peneirar cada detalhe, remontar e abraçá-lo. A pesquisa vem para afirmar o que sempre fui. Quando meu avô paizim contava histórias de capelobo (entidade folclórica de origem indígena), ele estava construindo parte de mim naquele ser. Aí eu me desloquei para trás da câmera para retratar pessoas de diversas origens, em um processo de construção delicado. Não saio de casa com uma câmera e digo: hoje vou fotografar alguém. Os caminhos percorridos remontam à minha história. Pensar no fim, no esgotamento dessa fonte, é imaginar uma extinção das nossas identidades.
“Sobreposição da história”. Performer Kerolayne Kemblin, plantação de cana no Lindeia, Minas Gerais, Brasil (2019).
C&AL: Além de sua origem indígena, há ainda sua ancestralidade negra. Como foi tratar esse tema no trabalho Sobreposição da história?
Venho de uma família afro-indígena. Minha bisavó paterna, a mãe Dica, era uma mulher preta retinta com práticas da cultura africana. Sou um capelobo, uma mistura preta indígena não retinta. Os ancestrais da minha família materna, os Anapuru-Muypurá, viviam das lavouras. Meu pai construiu a casa em que nasci com duas roças de arroz. Então foram essas as aberturas para compor esse trabalho. Participar da Bolsa Pampulha em Belo Horizonte, em 2019, que resultou no trabalho Sobreposição da história, foi como se alguém tivesse me tomado pelos braços e feito aquela brincadeira de rodar que, quando você pousa os pés no chão, está tonta. Essa é a tradução de sair do Maranhão, e isso se reflete na pesquisa que fiz. Tudo era muito diferente, muito urbano. Foi preciso eu me deslocar para áreas mais afastadas do centro de Belo Horizonte, perambular até ver a cana nos quintais e ser inspirada por ela.
Aconteceu como uma “miração” [N. da R.: visão espiritual que ocorre durante estado de consciência expandida com o uso da Ayahuasca], que tive ao relacionar a cana e o cristal selenita. Esses dois materiais têm superfícies bem parecidas, com fibras brilhantes. Usei a selenita para fazer uma lavagem do sofrimento dos corpos pretos nos canaviais. Como a selenita nutre e limpa, eu a ponho na garapa da cana e massageio os pés e as mãos das pessoas convidadas para essa ação/ritual. Isso está nos vídeos que compõem a obra, juntamente com as fotomontagens e textos colados nos sacos de ráfia.
C&AL: Seus trabalhos têm um viés político na medida que reescrevem o passado trágico com as ferramentas de que você dispõe. Como as linguagens e suportes ajudam a compor esse enfrentamento?
GV: Muitos dos meus trabalhos tratam de assuntos delicados por conta dos traumas da colonização e escravização dos corpos pretos e indígenas. Esses assuntos não se fecham na imagem final. É como o pensamento do parente Daniel Munduruku: “Trato do passado, mas reescrevendo o futuro dentro do presente”. Uma referência de enfrentamento é pensar os suportes que uso, que são como próteses de decolonização.
Defini o papel jornal para Paridades, porque não queria um papel “branco”. Da mesma forma, no Sobreposição da história, os sacos de ráfia que uso marcam as costas e a exploração da mão de obra negra que, como no passado, descarrega produtos da plantação escravista, ainda atual em muitos lugares. Sobrepus nessas superfícies fotomontagens que deslocam a narrativa histórica oficial e se transformam em um instrumento de fala, poder e protagonismo desses corpos. Estamos ascendendo reluzindo, vivos para proteger a nós e aos outros.
“Paridades” primeira camada: Raimundo Mutirão Santa Luzia, Maranhão. Foto: Ge Viana. Segunda camada: Ancião do povo botocudo, Marc Ferrez. Fotografia/ fotomontagem (2017).
Muitos dos meus trabalhos tratam de assuntos delicados por conta dos traumas da colonização e escravização dos corpos pretos e indígenas.
C&AL: No trabalho Corpografia do Pixo, você propõe uma espécie de tradução de linguagens. Que ideia vem ao transpor a grafia das pichações em movimentos de corpos registrados em fotos e vídeos?
GV: Corpografias do Pixo, para além da dança, é uma ação micropolítica que coloca em foco não só o fenômeno da pixação*, mas também o corpo do indivíduo que deixou sua marca. Os símbolos criados pelos pixadores são subjetivos, como a estética de cada pixação que vai definir esse jeito vesgo e torto de dançar frente a eles. O ato de pixar é performático por si só. É arriscar-se, assim como o ato de duas mulheres projetarem seus corpos na rua durante a performance. A pixação incomoda, porque cultuamos a ideia da fachada branca cômoda e, quando vamos corpografar, isso fica mais visível pelas provocações e risos que as pessoas emitem. São várias aberturas para pensar como podemos ocupar a cidade.
[N. da R.: Os termos pixo, pixação e pixar, na grafia com x, são relativos ao tipo de pichação ilegal e transgressora, muitas vezes só legível para seus autores e seus grupos].
C&AL: Você já participou de uma série de residências artísticas. Qual a importância desses espaços/tempo de vivências?
Cada residência é uma fase de maturação e crescimento. As residências vêm para quebrar com a própria ideia de arte, para compreendê-la como uma prática da vida cotidiana, que não se desliga e liga. Você vai andando e criando, são estalos, é fluido. Eu levei uma machadada na testa em cada residência, com fissuras que fazem você andar mais leve e pisar com respeito na terra, com cuidado com o próximo e com a forma como você cria.
C&AL: O isolamento imposto pela Covid-19 interrompeu algum processo artístico?
GV: Eu ia dar continuidade à obra Sobreposição da História na cidade de Alcântara, no Maranhão, um território composto por mais de 300 quilombos, onde a população está sendo ameaçada pela instalação de uma base de lançamento de foguetes. Travamos uma luta juntos, para que esse possível despejo não aconteça. Esse meu projeto foi adiado. A quarentena veio para eu desacelerar e visitar as memórias da minha avó. Agora estamos construindo algo juntas.
Tânia Caliari é jornalista. Vive em São Paulo.