O projeto “Der Black Atlantic” (O Atlântico Negro), apresentado na Casa das Culturas do Mundo em 2004, tomou a paradigmática decisão de focar em Berlim como um dos centros da Diáspora Africana no hemisfério ocidental. Com concertos, performances, literatura, instalações de artes visuais, filmes, debates e conferências, ele jogou luz nas dinâmicas e nas conexões amplamente ramificadas da cultura negra transatlântica.
Isaac Julien, True North Series No. 6 (Série Verdadeiro Norte Nº 6), 2004. Cortesia do artista
Isaac Julien, After Paradise (Depois do paraíso), 2002. Impressões separadas em papel Concorde Rag brilhante branco, 45.3h x 45.3w (115 x 115 cm). Cortesia do artista.
O título da exposição, cunhado por Paul Gilroy ao lado das historiadoras Fatima El-Tayeb e Tina Campt, está alinhado com o conceito de Gilroy do “Atlântico Negro” (1993). (1) Este encara o oceano Atlântico como um continente negativo que permite um mapeamento da cultura da Diáspora Africana, de sistemas incorporadores e de redes de comunicação sociais, históricas e culturais entre as Américas, a África e a Europa Ocidental. Um dos primeiros projetos interdisciplinares do tipo, Der Black Atlantic questionou os conceitos ocidentais dominantes de cultura, originalmente baseados em discursos raciais e políticas de fundação da nação. Ao fazê-lo, o projeto sublinhou como produções artísticas sônicas, visuais e performáticas, bem como obras teóricas da moderna Diáspora Africana à cultura pop global, executaram uma revisão radical das noções de artes encontradas na historiografia eurocêntrica.
Ao pisar no espaço da exposição, o visitante era guiado a viver a experiência de formas artísticas e linguagens que emergiram da história da escravidão e do racismo, adentrando, assim, um diálogo crítico de tais traumas. O potencial da música como uma arte protagonista da Diáspora negra, anteriormente abordado por Paul Gilroy como uma forma de memória social transétnica, foi central para esses encontros mnemônicos. Por ocasião do evento, o guitarrista e produtor Jean Paul Bourelly, curador do programa musical Congo Square (Praça Congo), convidou o público a uma jornada do free funk, blues e hip-hop ao dancehall, olhando o passado da soberana influência emancipatória do jazz na história do “Atlântico Negro”. (2) Posicionar experiências sonoras no centro da agenda do “Atlântico Negro” foi, sem dúvida, uma das ideias visionárias do projeto, expandindo o horizonte curatorial para uma compreensão ampla de sons como realidades dissidentes em potencial e repensando formas de enunciar histórias silenciadas.
Ecoando a imagem do deslocamento na abordagem analítica de Gilroy, as artes visuais não foram expostas nem no formato tradicional de exibição separado, nem materializadas por unidades separadas de peças artísticas; pelo contrário, espalhadas em movimento por instalações multimídias. Com suas obras, Isaac Julien, Keith Piper, Lisl Ponger e Tim Sharp tomaram por completo a estrutura do prédio, num traçado em conjunto das “poéticas da relação” (3) de Edouard Glissant como parte da rede cultural rizomática em comum da Diáspora Africana.
Isaac Julien, After Paradise (Depois do paraíso), 2002. Fotografias separadas de tamanhos iguais. Papel branco brilhante Concorde Rag, 115x 115 cm. Cortesia do artista.
Para além do escopo simbólico da proeminente arquitetura da Casa das Culturas do Mundo (4), o projeto ultrapassou os muros institucionais ao convidar o visitante a participar do Black Berlin City Bus Tour (Ônibus Turístico da Berlim Negra), que rastreou na capital, de forma crítica, a história colonial e afro-germânica. Ismael Ivo, com sua companhia de dança, proporcionou igualmente uma perspectiva decolonial, fazendo performances em lugares históricos em Berlim reconhecidamente controversos, tais como a Praça Gendarmenmarkt e a Mohrenstrasse (“Rua dos Mouros”). Ao dar visibilidade para a presença negra em Berlim, o projeto despertou discussões públicas acerca da inscrição do passado colonial alemão no imaginário coletivo e seu papel estratégico como epicentro da Conferência de Berlim (5), moldando a ordem geopolítica dos territórios coloniais.
Financiada pela Fundação Cultural Federal da Alemanha, com patrocínio da comissão alemã da Unesco e apoio adicional do Ministério da Cultura do Brasil, Der Black Atlantic teve êxito no questionamento de todos os tipos de narrativas da história nacional. Mas antes de mais nada, a exposição investigou a questão de como a Alemanha está e pode continuar encarando sua história colonial suprimida, mesmo ainda no começo do século 21. Na busca da relação entre modernidade e terror, o conceito de “Atlântico Negro” de Gilroy foi aplicado com precisão, possibilitando um espaço coletivo para debates acerca da ideia que a Alemanha tem de si mesma hoje como nação e para a reflexão a respeito da opressão da presença negra. O projeto estava, seguramente, na linha de frente ao mostrar, conforme sublinhou Louis Chude-Sokei, o fato de que “o Atlântico Negro é tanto uma afirmação de método quanto uma história intelectual e um trabalho de crítica” (6), que tem se mostrado adaptável a realidades políticas múltiplas e ainda ecoa nas questões sociopolíticas atuais.
Por último, mas não menos importante, a aplicação curatorial do “Atlântico Negro” de Gilroy permitiu a adoção de uma abordagem mais inclusiva do conceito. Tais esforços desviaram o conceito de uma existência restrita a ferramenta teórica; em vez disso, ancorou seu foco em representar diversas experiências transatlânticas negras vividas e em traduções culturais empíricas, propiciando a consciência política das consequências no presente do comércio atlântico de escravos. Outra iniciativa inovadora do projeto envolveu o desenvolvimento de uma plataforma eletrônica artística que seria fonte de pesquisa e arquivo permanente “para auxiliar o visitante a ter uma visão panorâmica da interdisciplinaridade que constrói o discurso do Atlântico Negro” (7) através do tempo e do espaço. A inserção no espaço digital da internet faz com que o evento cultural Der Black Atlantic ainda esteja acessível nos dias de hoje, mantendo-se, assim, vivo como parte da Diáspora negra rizomática e de seu legado. Entre memórias e identidades, o projeto Der Black Atlantic contribuiu para o crescimento de sistemas interconectados, realizando transformações sociopolíticas rumo a um mundo igualitário e convidando a repensar a desconstrução do sujeito.
Elsa Guily é crítica cultural e pesquisadora independente baseada em Berlim, especializada em interpretações contemporâneas da teoria crítica e dos desafios políticos da representação.
(1) Paul Gilroy, em sua publicação pioneira O Atlântico Negro, reivindicou a existência de cultura negra transatlântica como forma de “repensar a modernidade por meio da história do Atlântico Negro e da Diáspora Africana no hemisfério ocidental” (1993: 17). Mirando o Atlântico como um sistema cultural e político, Gilroy reexamina o que constitui o cânone da civilização ocidental e seus legados nos debates contemporâneos (1993: 9). Para além dos limites nacionais, seu conceito abraça a noção de hibridismo nas culturas cujos temas e técnicas transcendem etnicidade e tradição. Seu livro se tornou uma fonte relevante de inspiração para muitos artistas, teóricos, curadores e também ativistas. Ver: Paul Gilroy. The Black Atlantic. Modernity and double consciousness. Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1993. [Ed. brasileira: O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012]
(2) Gilroy argumenta em seu livro que a expressão musical negra tem ocupado um papel na reprodução de uma contracultura da modernidade (1993: 36). Para saber mais sobre a história do jazz como instrumento de transformações emancipatórias ver também o artigo de Jean-Paul Bourelly, “Geschichten der Jazz”, e sua entrevista a Christian Beck, “Musik hat die Kraft, zu befreien”. Em Der Black Atlantic. HKW (ed.) em conjunto com Paul Gilroy e Tina Campt. HKW, Berlim, 2004.
(3) Cf. teoria cultural de Edouard Glissant sobre identidade pós-colonial: Poetics of Relation. Paris Gallimard, 1990.
(4) A Haus der Kulturen der Welt foi a contribuição dos Estados Unidos para a exposição de arquitetura INTERBAU 1957, em Berlim. Hugh Stubbins, o autor do projeto e que desejava marcar terreno no contexto da Guerra Fria naquele momento, descreveu a forma do prédio como “completamente livre”. O maciço teto curvo inscreveu o simbolismo da Casa das Culturas do Mundo (HWK) em Berlim como sendo um espaço de luta contra as restrições à liberdade intelectual. Saiba mais no site oficial da HKW: https://www.hkw.de/de/hkw/gebauede/gebaeude/index.php
(5) A conferência aconteceu entre 5 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885. Para saber mais sobre a conferência e seus desdobramentos, leia meu artigo anterior sobre a exposição na Saavy Berlim por ocasião do centenário da Conferência de Berlim, URL: The Berlin Conference: How art deals with the carving of a continent.
(6) Louis Chude-Sokei, “The Black Atlantic Paradigm: Paul Gilroy and the Fractured landscape of ‘Race’”, American Quartely, 48.4 (1996), p.745. Citado em Benedict Ledent e Pilar Cuder-Dominguez (2012), New Perspectives on the Black Atlantic. Definitions, readings, practices, dialogues, p.16.
(7) Ler o manifesto no endereço: http://www.blackatlantic.com/general/index.html
Traduzido do inglês por Heitor Augusto.
Qual é o futuro das relações transatlânticas do Sul, sobretudo em relação ao papel da Europa no passado, presente e futuro? Estas questões serão discutidas na Conferência Ecos do Atlântico Sul que acontece entre 23 e 25 de abril de 2018, em Salvador da Bahia.