Ecos do Atlântico Sul

O Atlântico Negro – matéria de (contra)memória

O projeto “Der Black Atlantic” (O Atlântico Negro), apresentado na Casa das Culturas do Mundo em 2004, tomou a paradigmática decisão de focar em Berlim como um dos centros da Diáspora Africana no hemisfério ocidental. Com concertos, performances, literatura, instalações de artes visuais, filmes, debates e conferências, ele jogou luz nas dinâmicas e nas conexões amplamente ramificadas da cultura negra transatlântica.

Para além do escopo simbólico da proeminente arquitetura da Casa das Culturas do Mundo (4), o projeto ultrapassou os muros institucionais ao convidar o visitante a participar do Black Berlin City Bus Tour (Ônibus Turístico da Berlim Negra), que rastreou na capital, de forma crítica, a história colonial e afro-germânica. Ismael Ivo, com sua companhia de dança, proporcionou igualmente uma perspectiva decolonial, fazendo performances em lugares históricos em Berlim reconhecidamente controversos, tais como a Praça Gendarmenmarkt e a Mohrenstrasse (“Rua dos Mouros”). Ao dar visibilidade para a presença negra em Berlim, o projeto despertou discussões públicas acerca da inscrição do passado colonial alemão no imaginário coletivo e seu papel estratégico como epicentro da Conferência de Berlim (5), moldando a ordem geopolítica dos territórios coloniais.

Financiada pela Fundação Cultural Federal da Alemanha, com patrocínio da comissão alemã da Unesco e apoio adicional do Ministério da Cultura do Brasil, Der Black Atlantic teve êxito no questionamento de todos os tipos de narrativas da história nacional. Mas antes de mais nada, a exposição investigou a questão de como a Alemanha está e pode continuar encarando sua história colonial suprimida, mesmo ainda no começo do século 21. Na busca da relação entre modernidade e terror, o conceito de “Atlântico Negro” de Gilroy foi aplicado com precisão, possibilitando um espaço coletivo para debates acerca da ideia que a Alemanha tem de si mesma hoje como nação e para a reflexão a respeito da opressão da presença negra. O projeto estava, seguramente, na linha de frente ao mostrar, conforme sublinhou Louis Chude-Sokei, o fato de que “o Atlântico Negro é tanto uma afirmação de método quanto uma história intelectual e um trabalho de crítica” (6), que tem se mostrado adaptável a realidades políticas múltiplas e ainda ecoa nas questões sociopolíticas atuais.

Por último, mas não menos importante, a aplicação curatorial do “Atlântico Negro” de Gilroy permitiu a adoção de uma abordagem mais inclusiva do conceito. Tais esforços desviaram o conceito de uma existência restrita a ferramenta teórica; em vez disso, ancorou seu foco em representar diversas experiências transatlânticas negras vividas e em traduções culturais empíricas, propiciando a consciência política das consequências no presente do comércio atlântico de escravos. Outra iniciativa inovadora do projeto envolveu o desenvolvimento de uma plataforma eletrônica artística que seria fonte de pesquisa e arquivo permanente “para auxiliar o visitante a ter uma visão panorâmica da interdisciplinaridade que constrói o discurso do Atlântico Negro” (7) através do tempo e do espaço. A inserção no espaço digital da internet faz com que o evento cultural Der Black Atlantic ainda esteja acessível nos dias de hoje, mantendo-se, assim, vivo como parte da Diáspora negra rizomática e de seu legado. Entre memórias e identidades, o projeto Der Black Atlantic contribuiu para o crescimento de sistemas interconectados, realizando transformações sociopolíticas rumo a um mundo igualitário e convidando a repensar a desconstrução do sujeito.

Elsa Guily é crítica cultural e pesquisadora independente baseada em Berlim, especializada em interpretações contemporâneas da teoria crítica e dos desafios políticos da representação.

(1) Paul Gilroy, em sua publicação pioneira O Atlântico Negro, reivindicou a existência de cultura negra transatlântica como forma de “repensar a modernidade por meio da história do Atlântico Negro e da Diáspora Africana no hemisfério ocidental” (1993: 17). Mirando o Atlântico como um sistema cultural e político, Gilroy reexamina o que constitui o cânone da civilização ocidental e seus legados nos debates contemporâneos (1993: 9). Para além dos limites nacionais, seu conceito abraça a noção de hibridismo nas culturas cujos temas e técnicas transcendem etnicidade e tradição. Seu livro se tornou uma fonte relevante de inspiração para muitos artistas, teóricos, curadores e também ativistas. Ver: Paul Gilroy. The Black Atlantic. Modernity and double consciousness. Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1993. [Ed. brasileira: O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012]

(2) Gilroy argumenta em seu livro que a expressão musical negra tem ocupado um papel na reprodução de uma contracultura da modernidade (1993: 36). Para saber mais sobre a história do jazz como instrumento de transformações emancipatórias ver também o artigo de Jean-Paul Bourelly, “Geschichten der Jazz”, e sua entrevista a Christian Beck, “Musik hat die Kraft, zu befreien”. Em Der Black Atlantic. HKW (ed.) em conjunto com Paul Gilroy e Tina Campt. HKW, Berlim, 2004.

(3) Cf. teoria cultural de Edouard Glissant sobre identidade pós-colonial: Poetics of Relation. Paris Gallimard, 1990.

(4) A Haus der Kulturen der Welt foi a contribuição dos Estados Unidos para a exposição de arquitetura INTERBAU 1957, em Berlim. Hugh Stubbins, o autor do projeto e que desejava marcar terreno no contexto da Guerra Fria naquele momento, descreveu a forma do prédio como “completamente livre”. O maciço teto curvo inscreveu o simbolismo da Casa das Culturas do Mundo (HWK) em Berlim como sendo um espaço de luta contra as restrições à liberdade intelectual. Saiba mais no site oficial da HKW: https://www.hkw.de/de/hkw/gebauede/gebaeude/index.php

(5) A conferência aconteceu entre 5 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885. Para saber mais sobre a conferência e seus desdobramentos, leia meu artigo anterior sobre a exposição na Saavy Berlim por ocasião do centenário da Conferência de Berlim, URL: The Berlin Conference: How art deals with the carving of a continent.

(6) Louis Chude-Sokei, “The Black Atlantic Paradigm: Paul Gilroy and the Fractured landscape of ‘Race’”, American Quartely, 48.4 (1996), p.745. Citado em Benedict Ledent e Pilar Cuder-Dominguez (2012), New Perspectives on the Black Atlantic. Definitions, readings, practices, dialogues, p.16.

(7) Ler o manifesto no endereço: http://www.blackatlantic.com/general/index.html

Traduzido do inglês por Heitor Augusto.

Qual é o futuro das relações transatlânticas do Sul, sobretudo em relação ao papel da Europa no passado, presente e futuro? Estas questões serão discutidas na Conferência Ecos do Atlântico Sul que acontece entre 23 e 25 de abril de 2018, em Salvador da Bahia.

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