A historiadora da arte Sabrina Moura discute os deslocamentos entre as narrativas da arte afro-cubana de Wilfredo Lam até José Bedia e analisa o uso dos conceitos da Diáspora Africana no mundo da arte global.
Capa do catálogo da 3ª Bienal de Havana (1989)
Capa dos anais da conferência sediada pela 1ª Bienal de Havana (1984)
Kiyumba Ndoki (1997) e Kiyumba Bafiota (1997): a obra de José Bedia exposta na 6ª edição da Dak’art (2004)
Fundada sob o signo do pintor Wifredo Lam (1902-1982), a Bienal de Havana trazia entre os seus principais eixos conceituais a questão da presença africana na cultura cubana. Para os idealizadores da bienal, a trajetória de Lam – filho de um imigrante chinês e uma mãe de ascendência afro-espanhola – condensava não somente o imaginário terceiro-mundista almejado pela mostra na época, mas também a representatividade da presença afro-cubana no campo das artes visuais.
Durante a primeira edição da Bienal (1984) foi organizada uma Conferência Internacional sobre Wilfredo Lam, na qual a curadora Lowery Stokes Sims cita o encontro entre Lam e Aimé Césaire, em 1941, e a influência da negritude de Léopold Sédar Senghor como fatores decisivos para que o artista pudesse reconhecer a presença africana em sua própria obra. Segundo Stokes Sims, Lam “empregou rituais afro-cubanos e mitos que lhe eram familiares desde menino, para criar uma abordagem modernista única e muito pessoal” (1) em sua arte. Uma condição precursora que, anos mais tarde, seria reiterada por Gerardo Mosquera, ao considerar Lam o primeiro artista a incorporar o “elemento africano” na arte moderna das Américas. (2)
“O trabalho do artista cubano é uma realização que pode ser […] relacionada à negritude como construção consciente e neológica de um paradigma negro. […] Fascinado por elementos ‘primitivos’ e africanos, graças à arte moderna, ele começa a expressar tais aspectos em si mesmo”. – Gerardo Mosquera
Lam foi o primeiro artista que expressou o “elemento africano” na arte moderna.
Associadas, sobretudo à cultura popular, as expressões afro-cubanas que influenciaram o trabalho de Lam eram frequentemente relegadas a uma posição marginal na narrativa nacional das artes. Todavia, elas desempenhariam um papel central entre os artistas que começaram a atuar no período pós 1959, como o jovem José Badia. Um iniciado no Palo Monte – sistema ritual afro-cubano que, junto com a Santería, teve uma forte influência nas artes visuais (3) – o artista fez referências constantes à cosmologia e iconografia palera, a fim de construir uma semântica específica em seu trabalho. (4)
Além disso, a geração de Bedia é amplamente reconhecida por reavaliar as artes nacionais e contribuir para o surgimento de uma atitude pós-colonial em relação à cultura cubana. (5) Trabalhando ativamente na década de 1980, esses artistas fizeram uso de conceitos como o de “transculturação”, elaborado pelo antropólogo e escritor Fernando Ortiz Fernández, para delinear visualmente uma essência cubana que levasse em consideração tradições não canônicas. Durante a terceira edição da Bienal de Havana, em 1989, por exemplo, Bedia apresentou uma mostra individual, na qual afirmou seu processo criativo como um método transcultural, “na metade do caminho entre a ‘modernidade’ e o ‘primitivismo’, o ‘civilizado’ e o ‘selvagem’”. (6)
Provavelmente foi essa condição “transcultural” que levou o trabalho de Bedia a ser apresentado na 6ª edição da Dak’Art (2004), como parte da exposição Retour à Dakar: 3 artistes en provenance des Amériques. Com curadoria do brasileiro Ivo Mesquita, a mostra se dedicou a explorar a noção de Diáspora Africana nas Américas, incluindo o trabalho de dois outros artistas: Mario Cravo Neto e Odili Donald Odita. Em seu texto de apresentação, Mesquita afirma: “No que diz respeito ao assunto proposto, a Diáspora Africana, devo admitir que os artistas e obras apresentadas trazem aqui um entendimento diferente das práticas culturais e de uma abordagem teórica que apresenta uma África utópica, um território a ser descoberto, um projeto a se realizar, uma cultura por fazer […] Pelo contrário, aqui ela é considerada uma matriz cultural, […], a mãe que, uma vez expatriada na América, deu a luz a seus filhos mestiços.” – Ivo Mesquita
A inserção de José Bedia em Retour à Dakar, pelo viés da Diáspora, intriga. De origem espanhola, o artista não possui a ascendência africana que embasa a retórica do retorno ou da mestiçagem exortada pelo curador da mostra. Como na 3ª Bienal de Havana, Bedia apresenta em Dakar um conjunto de obras – entre as quais Kiyumba Ndoki e Kiyumba Bafiota (1997) — que remetem a elementos surgidos a partir da “recriação pessoal de antigas imagens etnográficas, especificamente da região do Congo e tribos relacionadas em Angola e Zâmbia” (7). Aqui, a adesão de Bedia à condição diaspórica parece não se inscrever nas tramas de uma filiação literal, mas nas vivências internas do artista, materializadas nessas obras. Nesse sentido, podemos intuir que Ivo Mesquita foi guiado por argumentos biográficos e subjetivos para validar sua proposta curatorial para Retour à Dakar.
Em seu ensaio The Diaspora as Object (2003), o historiador da arte John Peffer aponta questões importantes acerca dos usos discursivos e estéticos do conceito de Diáspora Africana na arte. “Muito da nova arte procura deslocar a Diáspora de uma condição de sujeito-que-fala para passar a ser um objeto-em-questão” (8), afirma Peffer. Ao assumir a condição de objeto, a noção de Diáspora passa a recombinar múltiplas conexões geográficas e históricas, oferecendo “um insight crucial na condição global atual”. Mas isso não se dá sem uma perda, já que as implicações políticas do termo – originalmente baseado em experiências de exílio forçado e um patrimônio cultural comum – apresentam-se dissolvidas por enquadramentos discursivos difusos:
“Hoje em dia, o conceito de Diáspora pode ver-se incluído entre um conjunto de lugares comuns como fronteira, crioulização, transculturação, hibridismo, e outros, todos eles tentando descrever zonas de contato intercultural e culturas transnacionais”, diz John Peffer.
Se, em Cuba, a exibição do trabalho de Bedia é baseada na afirmação de uma visão dinâmica e contemporânea da presença afro-cubana na ilha, em Dakar, ela engloba uma perspectiva ampliada do que se considera a Diáspora Africana. A questão é saber em que medida a maleabilidade desses conceitos e seus usos no sistema da arte global demandam uma contextualização mais precisa. Ao inscrever a circulação de práticas artísticas em seus contextos políticos, as redes transnacionais que permeiam a história de bienais como as de Havana e Dakar podem nos ajudar a esclarecer como tais concepções são apropriadas pelo discurso curatorial. Como sabemos, mostras dessa natureza nunca são eventos isolados, resultantes de um único projeto autoral. Ao contrário, elas se inscrevem em uma combinação de forças e interesses que transcende amplamente o que chamamos “mundo da arte”.
Sabrina Moura é curadora e editora radicada em São Paulo (Brasil).
(1) Stokes Sim, L. “Wifredo Lam: Surrealismo del Nuevo Mundo”. In: Sobre Wifredo Lam. Ponencias de la Conferencia Internacional I Bienal de la Habana. Havana: Editorial Letras Cubanas, (1986). (2) Mosquera, G., Beyond the Fantastic: Contemporary Art Criticism from Latin America. Cambridge: MIT Press (1996): 121-132. (3) Camnitzer, L., New art of Cuba. Austin: University of Texas Press, (2003): 41 (4) Bettelheim, Judith. “Palo Monte Mayombe and Its Influence on Cuban Contemporary Art.” African Arts 34, no. 2 (2001): 36-96 (5) Importante ressaltar que Palo Mayombe não é a única referência ritual na exposição de Bedia para a 3ª Bienal de Havana, já que apresenta também obras baseadas em práticas espirituais de indígenas norte-americanos, entre outros cultos caribenhos. (6) Bedia, J., Catálogo da 3ª Bienal de Havana (1989): 217. (7) Entrevista com José Bedia, Junho de 2016. (8) Peffer, J.,. “The Diaspora as Object”. Looking both ways: Art of Contemporary African Diaspora. New York: Museum for African Art, (2003): 22-35