Imagens e Justiça

Como vidas negras importam na coleção do MoMA?

Neste ensaio, Thomas J. Lax examina as relações entre violência racial e sua documentação e relevância.

No vídeo de Steffani Jemison de 2010/2011, The Escaped Lunatic (O lunático foragido), um fluxo constante de pessoas negras corre pela tela, acelerando, saltando e rolando pelas ruas de Houston. O vídeo empresta sua estrutura narrativa do cinema do início dos anos 1920 – o gênero da perseguição, em particular – que frequentemente retratava afro-americanos em cenas de fuga de vários tipos de autoridade. Filmando a obra com um time de parkour baseado em Houston, na época em que morava naquela cidade, Jemison liga a estrutura emprestada do cinema antigo a um cenário contemporâneo, conectando corajosamente as condições injustas da vida urbana das pessoas negras através dos tempos. Simplificando: a obra de Jemison recorda o espectador que pessoas negras são percebidas como fugitivos, tanto quando estão correndo, como apenas por ter as mãos levantadas.

Ao rever recentemente os personagens movendo-se através das imagens pixeladas, isso me lembrou da morte de Israel Leija, protagonista de outra perseguição em alta velocidade no ano em que Jemison iniciou seu vídeo. Quando Leija, contra quem havia sido decretado um mandato de captura por violação à liberdade condicional, fugiu de carro à detenção, autoridades estenderam uma faixa cheia de pontas para impedir que ele escapasse pela rodovia. Apesar da certeza de que Leija seria detido, o policial estadual do Texas Chagrin L. Mullenix disparou seis tiros, assassinando-o, e depois gabou-se orgulhosamente: “Que tal a proatividade?”. (No mês passado, em um parecer sem assinatura, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu reverter um parecer do círculo judicial, concedendo imunidade a Mullenix; a juíza Sonia Sotomayor discordou em uma declaração que repreendia a corte.) Enquanto o vídeo de Jemison retrata mais uma cena de perseguição a negros que parece inevitável, em sua obra pode-se imaginar as fugas de seus personagens como pequenas fugas para um lugar fora do campo de visão, mas não menos real.

Em formato de quase 2 x 4 metros, a obra American People Series #20: Die (Série Gente Americana #20: Morrer), de Faith Ringgold, produzida em 1967, é uma pintura monumental – um documento de sua época, assim como da longa permanência das questões que ela retrata. Obra final de uma série inspirada por um conjunto de ícones modernos, incluindo Guernica, de Pablo Picasso, os murais geométricos abstratos de Josef Albers, e as pinturas monocrômicas negras de Ad Reinhardt, Morrer representa o ápice da busca da artista pelo que ela chamava de “estética negra”.

Um banho de sangue carmesin em uma base quadriculada de preto e branco, a tela retrata uma cena desordenada em que um amontoado de homens, mulheres e crianças arquetípicas brancas e negras estão emaranhados em relações construídas intantâneamente através de conflito e preocupação. Curiosamente, apenas dois personagens (um negro, um branco) seguram armas, mas todos parecem estar feridos, implicando que pessoas de todos os lados da linha divisória das cores são vítimas em potencial da violência racial, que pode tomar muitas formas. Vestindo seus protagonistas com trajes de negócio da época, o quadro de Ringgold sugere que tensões raciais não são apenas material de conflitos de rua, mas o que hoje chamaríamos de microagressões – aquelas formas de agressão verbal e de comportamentos aparentemente fugazes que se somam criando ambientes violentos para pessoas de cor em todas as classes e segmentos da sociedade. A artista preocupava-se com a possibilidade de Morrer tornar-se uma profecia para sua época, mas a obra provou antecipar um arco muito mais longo.

Sejamos claros a respeito da ressonância que o trabalho de Ringgold tem hoje: justamente como a pintura acusa todas os trabalhadores de paletós, vestidos e colarinho branco que aparecem em seu quadro, temos de implicar as instituições profissionais em que nos encontramos como parte de uma cultura avessa aos negros mais ampla.

Kerry James Marshall, conhecido por suas pinturas de grande porte de figuras negras cor de carvão em clubes, apaixonadas, e gozando alguns dos confortos pessoais da vida afro-americana, completou no ano passado seu Sem título (policial). Nele, um tira negro, com uma insígnia de Chicago em seu quepe, está sentado no capô de seu carro, sob as luzes noturnas de um estacionamento. Ele olha para seu próprio espaço e para longe do observador, com uma mão na cintura e a outra em seu regaço. Contemplativo e irradiando autoridade, resoluto e indeciso ao mesmo tempo, ele não é apenas um tipo – o policial negro como um símbolo contraditório de poder e impotência, por exemplo. Antes, Marshall retrata esse policial como um indivíduo cujo semblante reflexivo revela um protagonista que o artista descreve como quem está no meio de um pensamento sobre as circunstâncias em que se encontra.

Atentando para as imagens do chefe de polícia de Dallas, David O. Brown, apoiando a cabeça nas mãos durante uma vigília de oração na sexta-feira, foi difícil para mim não pensar nele como um avatar da interpretação de Marshall de um homem negro tentando consertar uma instituição que muitos neste país veem como sendo estruturada pelo racismo. De fato, Brown – um afro-americano nativo de Dallas em quarta geração, que defendia maior transparência na implementação da lei antes da morte de Michael Brown, em 2014 – tem sua própria história pessoal complexa de violência policial: perdeu seu antigo parceiro durante o cumprimento do dever, seu irmão, num crime violento, e seu filho, depois de ele assassinar um oficial de polícia e outro homem.

Mas o que fazemos para além do sofrimento público de Brown? O que acontece depois da autorreflexão do policial de Marshall? O que é maior que os efeitos das aquisições desse museu? Tenho certa fé de que a imagem de fuga e escape de Jemison, o senso de onipresença banal da violência racial de Ringgold e o retrato de uma figura de autoridade perturbada de Marshall não sejam apenas cenas de contemplação. Talvez eles venham a intervir em nossas linguagens visuais, germinando nosso senso de imaginação social. Por exemplo: será que o policial de Marshall levantará de seu carro para desembainhar e renunciar à arma para a qual sua mão direita aponta – outra forma retilínea monacromática na linha do horizonte do capô do carro? Podemos chegar ao lugar próximo para onde os protagonistas de Jemison estão fugindo um após o outro? Se essas obras oferecem algo neste momento de crise, é o espaço em que possamos ser anulados e dar boas-vindas ao desconhecido. Analisando e atuando juntos, talvez continuemos a boa luta e persigamos o duro amor de que necessitamos neste momento.

Agradeço a Elizabeth Alexander, Morgan Bassichis, Jocelyn Brown, Stuart Comer, Leah Dickerman, Adrienne Edwards, Darby English, Thelma Golden, Che Gossett, Kathy Halbreich, Saidiya Hartman, Rujeko Hockley, Laura Hoptman, Naomi Jackson, Ana Janevski, Steffani Jemison, Kellie Jones, Carolyn Kelly, Glenn Lowry, Kerry James Marshall, Helen Molesworth, Faith Ringgold, Lanka Tattersall, Ann Temkin, Akili Tommasino, e Andrew Wallace por seus toques, conversas contínuas ou escritos sobre tópicos relacionados.

Este ensaio foi publicado originalmente no MoMa/MoMa PS1 Blog.

Thomas J. Lax é curador associado, Departamento de Mídia e Arte Performática, no MoMA, Nova York. Em 2014, Lax juntou-se ao MoMA após sete anos no The Studio Museum in Harlem, onde era curador assistente.

Traduzido do inglês por Renata Ribeiro da Silva.

Tópicos