Inventários invisíveis

Figuras ausentes: as difíceis questões que a restituição levanta

Ser solicitado a chamar algo de objeto pode ser preocupante, como evidenciado em Invisible Inventories (Inventários invisíveis), uma exposição no Museu Nacional de Nairóbi que levanta questões sobre artefatos quenianos saqueados. Awuor Onyango nos guia através da exposição e de sua concepção que visa tornar visíveis as certezas e incertezas na fase atual da ação decolonial.

“A extração de toda essa informação foi um projeto enorme”, diz Jim Chuchu, do Nest, um coletivo de artistas baseado em Nairóbi que faz parte do projeto desde sua criação, em 2017. Jim ressalta que, devido às restrições de espaço, as etiquetas de transporte nas paredes representam apenas cerca de 2 mil dos 32.501 itens identificados.

A etiqueta IIP Objeto 17742 diz: “Ponta de flecha (com marcas do clã) feita de madeira. Veja marcas do clã ‘Wat’. Essas varas com invólucros de papel me foram presenteadas pelo Bwana_ e adquiridas por ele de Magarini ou Marafa. Nomes em caracteres árabes nos rótulos”.

Rapidamente percebo que a sacola era muito pequena para carregar a raiva desencadeada em mim pelas cortinas de etiquetas de remessa, especialmente quando percebi que algumas das etiquetas têm as identificações do objeto a que se referiam deliberadamente borradas, um compromisso entre o IIP e os museus que recusaram a permissão para que esses objetos fossem identificados publicamente.

Você pode passar uma tarde inteira olhando para as etiquetas que contêm, cada uma, um pequeno relatório da cena do crime relacionado não apenas a um objeto, mas a uma parte de uma tradição espiritual ou cultura em extinção – porque é negada e tornada indisponível para um povo vivo. A violência imperial, colonial e outro tipo de violência extirpou das pessoas suas mitologias, filosofias, seus pecados e sucessos, substituindo-os pela propaganda colonial internalizada sobre as ideias de suas comunidades sobre o mundo. Onde começamos a reconhecer a vergonha e a perda do desconhecido, do que foi banido, transformado em tabu, desapropriado e ressignificado para se tornar mais palatável? Na exposição, a recusa das instituições ocidentais em ver esses objetos como perdas para aqueles que estão vivos é enfatizada por uma fileira de vitrines vazias com adesivos nas laterais; altares para a ausência de objetos fantasmas.

“A questão da ausência é que você pode senti-la, você pode ver os cantos e os limites, mas não sabe o que é essa ausência”, diz Jim Chuchu sobre o vazio deixado pelos ecossistemas e pelas culturas perdidas que os objetos faltantes representam, além da condição dos objetos como entidades tangíveis.

Foi impossível emprestar qualquer um desses objetos para a exposição, mas o Coletivo Tuzi, sediado em Nairóbi, oferece outro acordo. Algumas colagens surreais materializam alguns dos objetos, mostrando sua possível aparência enquanto estavam em uso e quem poderia tê-los possuído.

“A tragédia não é que os objetos não estejam aqui, a tragédia é que os sistemas de conhecimento, as culturas e os sistemas de crenças que produziram esses objetos não existem mais da mesma forma como existiam”, diz Sam Hopkins, do Coletivo Shift, sediado na Alemanha. “E eles foram rebaixados, degradados e demolidos em alguns casos, sob um sistema colonial.”

Por que não pode ser as duas coisas?, murmuro calmamente.

Para muitas comunidades no Quênia, a tragédia é que os objetos não estejam lá e a própria ação de chamá-los objetos é, em si, difícil. O tambor Pokomo (o Ngadji) representa a voz do deus Pokomo. A cabeça de um líder espiritual dos Nandi (Koitalel Arap Samoei) faz parte de seus restos mortais, e sua alma não pode descansar sem os rituais funerários adequados que requerem seu retorno. As amarras totêmicas dos familiares mortos dos Mijikenda (Vigango) tinham como objetivo dar continuidade às vidas dos falecidos e à sua associação com a família, criando uma árvore genealógica, além de facilitar a proteção e a prosperidade dos vivos. Mesmo aquilo que é simplesmente objeto possui narrativas, como diz Jim Chuchu – cachimbos de tabaco para mulheres, por exemplo, nos dizem algo sobre o que as mulheres quenianas praticavam como lazer, uma narrativa extirpada delas por campos de tortura coloniais e pela construção da nação pós-colonial.

“São objetos que deveriam estar em sua terra, mas não estão. São objetos especiais, raros, que foram levados sob coação violenta específica, como butins de guerra”, diz Njoki Ngumi sobre os objetos no banco de dados. “São objetos que têm um significado muito profundo para as pessoas e é muito difícil nomear esses itens, como restos humanos…”

As amarras utilizadas pelo povo Vigango podem ser encontradas em hotéis boutique “inspirados em suaíli”, bem como em museus – a violência de apreender os restos mortais das almas dos negros e exibi-los como estética completamente perdida por seus colecionadores. A exposição apresenta perfis de alguns colecionadores, como o coronel Richard Meinertzhagen, CBE, DSO – o homem que convidou o líder da resistência dos Nandi, Koitalel Arap Samoei, para negociações e depois o decapitou, enviando sua cabeça para Londres para ser “estudada”. Louis Seymour Bazzet Leakey foi o mais surpreendente para mim – uma revisão radical de sua história é apresentada no mesmo espaço em que um auditório nacional foi batizado com seu nome. E havia também W.J. Ansorge, escritor de um livro chamado Sob o sol africano; uma descrição de raças nativas em Uganda, aventuras esportivas e outras experiências (1899).

“Ele não escreveu este livro para um universo em que os descendentes das pessoas de quem ele falava fossem lê-lo”, diz Njoki Ngumi sobre Ansorge. “Então, foi muito importante para nós como praticantes, oriundos do lugar que ele ridicularizou enquanto era transportado em sua pequena carruagem racista de colonizadores, cujos antepassados foram descritos de forma tão feia e impenitente por ele, conquistar o direito de também dizer o que queremos. Enquanto ainda estamos nesta terra, e ainda há acesso a este livro vil, devemos dizer tudo que há para se dizer sobre ele, com toda a honestidade que pudermos.”

O discurso sobre a restituição é repleto de razões pelas quais esses objetos não devem ser devolvidos, não são necessários, não são suficientemente demandados, não serão devidamente preservados – cheio de tentativas de afastar o vazio ou de ressignificá-lo, conforme seja mais conveniente para a criatividade. Uma das contribuições do Coletivo Shift para a exposição, uma topografia da perda, é um kanga, um pano suaíli feito para mulheres, cujo design característico é inspirado nos relevos cortados à mão nos quais os objetos quenianos são armazenados em museus no exterior. A mensagem no kanga diz: “Anadaiwa hata kope si zake” (Essa pessoa deve tanto que nem seus olhos são seus).

“A maneira como olhamos para os objetos muda, e então eles se tornam evidências”, diz Simon Rittmeier, do Coletivo Shift, sobre peças armazenadas em instituições culturais alemãs. A linguagem dos “objetos” é ofuscante: neste contexto, nada era simplesmente o que parecia – mesmo um pedaço de pano poderia ser tornado totêmico, dependendo de quem o tivesse doado e de qual mensagem ele carregava. A restituição não é apenas devolver objetos, reaprender identidades culturais, remodelar vazios, perdas, vergonha e violências. É voltar a se envolver com o que é possível.

“Para mim arte africana, sim, há arte assentada sobre tela e escultura, mas também há arte assentada no corpo das pessoas, nas coisas que as pessoas comem, nas coisas que as pessoas dançam, nas coisas que as pessoas dizem sobre si mesmas”, diz Jim Chuchu. “Um jeito como aplicamos arte ao nosso corpo e com o qual as sociedades contemporâneas perderam contato, de forma que agora olhamos para a arte como algo separado do corpo. Talvez possamos voltar a juntar arte e vida, sem separá-las em uma espécie de indústria para compras e comércio.”

Awuor Onyango é uma escritora e artista visual que vive na cidadela pagã de Nairóbi, no Quênia neocolonial. Ela aborda formas de contar histórias na tradição da arte vivida do Leste da África. Sua escrita tende para o afrossurreal, AfroSciFi e afroespeculativo, tendo sido publicada em várias revistas. Em 2017, ela foi indicada para o Prêmio Caine.

Tradução: Cláudio Andrade

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