A C& conversou com Gabi Ngcobo e Yvette Mutumba, cocuradoras da 10ª Bienal de Berlim, sobre o significado da recusa, a forma como a curadoria lidou com os vários tipos de expectativas e a importância de dizer as coisas com outro tipo de clareza.
Mildred Thompson, [Woodwork], 1969. Madeira, pregos, tinta verde, 90 x 103 x 6.3. Coleção particular. Cortesia de The Mildred Thompson Estate e Galerie Lelong & Co., Nova York
Karl Peters, Portrait of Mildred Thompson, começo dos anos 1970. Fotografia tirada com lente olho de peixe. Cortesia de The Mildred Thompson Estate e Galerie Lelong & Co., Nova York
Mildred Thompson, Sem Título (No. VIII), Sem Título (No. IV), Sem Título (No. III), 1973. Cortesia de The Mildred Thompson Estate and Galerie Lelong & Co., New York.
Contemporary And (C&): O título da Bienal, We don’t need another hero (“Não precisamos de mais um herói”), assim como o título do programa público, I’m Not Who You Think I’m Not (“Não sou quem você pensa que não sou”), sublinha, de maneira produtiva, uma posição de negação ou recusa. De onde vêm essas negações ou recusas?
GABI NGCOBO: Suponho que de diferentes lugares. Penso que um deles seja uma expectativa com relação ao que a bienal irá focar, baseada nas nossas posições subjetivas. As negações podem ser lidas como uma maneira de nos distanciarmos ou escaparmos de um certo tipo de expectativa, de forma que possamos trabalhar com as liberdades que outros curadores sequer necessitam reivindicar. Tornou-se necessário ter esses tipos de negações, especialmente com o título do programa público.
C&: Por que o título do programa público em particular?
GN: Bem, decidimos começar o programa público um ano antes da abertura da bienal. Então ele se tornou uma ferramenta importante para a criação de um espaço, para se ter essa conversa livremente e não esperar até que a lista de artistas fosse lançada. O programa público nos permitiu dar o tom da Bienal de Berlim, mas também descobrir como trabalhar com a própria organização da bienal.
YVETTE MUTUMBA: Também nos ajudou bastante, enquanto estávamos nessa jornada, refletir sobre o que sequer significa a recusa. Tivemos muitas conversas para tentarmos descobrir se a recusa era contra algo ou se tratava de ser esquivo. Trata-se de algo positivo, negativo ou até mesmo violento? Nesse sentido foi bastante proveitoso que as pessoas tivessem – ou que ainda tenham – certas expectativas, pois nos forçou a realmente pensar sobre qual é a nossa linguagem ou qual linguagem queremos usar de forma a afrontar tais expectativas.
C&: O título We don’t need another hero parece focar num poder coletivo.
GN: Sim, penso que isso seja importante. Sabe, quando pessoas como nós – e mulheres em geral – acessam essas posições de poder, frequentemente não estão interessadas em mudar as regras do jogo. De certo modo elas jogam o jogo da maneira que o encontraram – tal como definido, digamos, pelas hierarquias estabelecidas pelo poder do homem branco. Por séculos. Você deve ter cuidado em como recusa essa posição, pois claro que não estamos recusando nossas subjetividades e o fato de que, quando começamos a pensar sobre a exposição, o fazemos a partir de uma certa perspectiva. Também somos perguntadas sobre coisas que jamais seriam questionadas a outras pessoas. Há muitas outras pessoas que acham que partimos da mesma posição, especialmente mulheres brancas. Elas fazem observações acerca de um assunto, foco ou tema em comum, mas, para nós, isso não é um assunto de interesse ou de foco – podemos unicamente começar daqui, essa é a nossa realidade, essa somos nós – isso não é nosso assunto.
Karl Peters, Portrait of Mildred Thompson, começo dos anos 1970. Fotografia tirada com lente olho de peixe. Cortesia de The Mildred Thompson Estate e Galerie Lelong & Co., Nova York.
C&: Em termos de representatividade, quando foi anunciado que vocês estariam à frente da Bienal de Berlim, que tipo de resposta receberam do mundo negro da arte? A notícia também gerou expectativas?
GN: Bem, sim… Na verdade, essas expectativas são o outro lado da mesma moeda. Nossas negativas foram, sem dúvida, influenciadas por diferentes lados. Então tentamos encontrar a linguagem…
YM: … para também confrontar essas expectativas bastante específicas.
GN: Antonia Majaca escreveu e deu algumas palestras intituladas Against Curating as Endorsement (“Contra a curadoria como endosso”), e acho que essa é uma posição realmente importante. Para nós esse projeto não tem o intuito de reunir pessoas que concordam umas com as outras, ou conosco.
C&: E vocês não são representantes de ninguém.
YM: Exatamente. Porque isso também não pode ser papel nosso, satisfazer às expectativas.
GN: E muitas das expectativas direcionadas a nós assumiam que obviamente trabalharíamos com certas instituições culturalmente específicas em Berlim, ou trataríamos de certas questões inconclusas que têm estado no centro da paisagem cultural, como o Fórum Humboldt…
YM: E estava muito claro que não nos interessava tratar desses espaços. Ao mesmo tempo, com a Academia das Artes, por exemplo, a maneira como nos relacionamos com as obras lá expostas é bastante política e histórica.
C&: Como vocês negociaram a seleção de artistas menos conhecidos e os nomes de peso, bem como artistas que já morreram?
GN: Bem, não nos sentamos e dissemos “Precisamos de artistas mortos”. Foi uma série de conversas e encontros fortuitos que foram ótimos. Nomaduma Masilela, que integra nosso time curatorial, encontrou a obra de Mildred Thompson quando trabalhava no MoMA e passou a pesquisar seu trabalho. Thompson, na verdade, criou boa parte de sua obra na Alemanha, no período de autoexílio dos Estados Unidos. Achamos que essa seria uma posição importante para trazer à tona. Queríamos ter perspectivas femininas fortes na exposição, então há aquelas que não estão mais vivas, mas o que fizeram foi muito importante – talvez suas mortes, também. Mulheres como Gabi Nkosi, Belkis Ayón e Ana Mendieta. O fato de termos mais artistas mulheres é porque essas são posições nas quais estamos interessadas e que são mais visíveis a nós. Nós as vemos.
YM: Nós as vemos e nos conectamos a elas, e isso é empolgante. Com a Mildred foi ótimo descobrir todas essas coisas, como essa interessante conexão com a Alemanha, mas também nos termos de um contexto mais amplo e em relação a Audre Lorde e outras pessoas que são importantes para nós. Acho que é o mesmo com os nomes de peso e os não tão conhecidos. Alguns dizem que toda grande bienal “precisa” ter dois ou mais nomes que estão sendo “descobertos”. Estava claro para nós que não queríamos isso. Então se há algum nome desconhecido, não é porque queremos desenterrá-lo da África ou de onde seja.
C&: Gabi, gosto da sua ideia de que, como artista, você acrescenta um toque de transgressão à prática curatorial. Porque você também já atuou como artista.
GN: Para esse projeto, e na minha prática em geral, acho que essa é uma parte da minha vida interessante de se reter. Isso não significa que existo num ateliê, mas creio que manter essa identidade permite essa transgressão. Não sou governada pelas regras que não fiz para mim mesma. E não acho que artistas sejam mais especiais que outras pessoas que estejam fazendo trabalhos importantes no mundo.
Portia Zvavahera, Hapana Chitsva (All Is Ancient), 2018. Tinta de impressão à base de óleo e giz oleoso sobre tela, tríptico, parte I, 204 x 126 cm. Cortesia da artista e da galeria Stevenson, Cidade do Cabo e Joanesburgo.
Não sou governada pelas regras que não fiz para mim mesma.
C&: Vamos falar de Berlim como cidade, com suas profundas e complexas camadas históricas – como esse aspecto informou suas ideias acerca da Bienal de Berlim?
GN: Não creio que essa exposição seria possível em qualquer outro lugar. Não queríamos que o peso da história nos subjugasse. Claro que está lá, mas apontamos essas coisas de forma poética. E esperamos que as pessoas na Alemanha, em Berlim, encontrem coisas que ressoem…
YM: Além disso há as atividades [relacionadas à história] e as intervenções que já acontecem em Berlim, então não queríamos reinventar a roda. Acho que é como disse antes em relação aos espaços onde há as referências históricas, mas não num enquadramento óbvio para a exposição.
GN: Evitando a primazia do assunto.
YM: Exatamente. E temos certas posições artísticas que investigam bem especificamente essas histórias. A instalação de Zuleikha Chaudhari, por exemplo, lida com um aspecto da cidade que não é muito conhecido, examinando a complicada trajetória de Subhas Chandra Bose (1897-1945), um líder carismático da luta da Índia pela independência. Não apenas o governo nazista ajudou a financiar o Free India Center em Berlim, onde ele serviu como algo análogo à função de embaixador, mas também incorporou seus programas da Free India Radio em suas próprias transmissões de propaganda na Índia.
GN: Além disso, em relação aos espaços que escolhemos, o ambiente da Academia das Artes, o fato de que ela é circundada por um jardim e que as pessoas podem fazer algumas pausas dentro do próprio espaço era também importante. É o mesmo com o ZK/U – Centro de Artes e Urbanismo –, que tem um parque público e área verde, onde as pessoas também podem descansar. Em relação à Academia existe também o fato de que ela guarda bastante história em seus vastos arquivos, tão vastos que nenhum ser vivo sabe exatamente o que está lá. E acho que para nós foi importante entrar neles, ter a possibilidade de olhar certas coisas.
YM: Visitamos os arquivos, cavoucamos materiais como pôsteres e desenhos, que refletiam as conexões entre a antiga Academia da Alemanha Oriental e os países socialistas como Cuba.
C&: Vocês irão exibi-los?
YM: Foi mais uma coisa de ter consciência deles do que literalmente colocá-los na exposição. Acessar que tipos de história estão contidas na Academia. Também entender o que se entende como excelência artística no contexto da Academia: por séculos ela representou posições ocidentais, do homem branco europeu. Claro que trazer os artistas que escolhemos é inclusive uma afirmação do que também pode ser excelência artística, visto que ser sócio da Academia ainda significa fazer parte, ainda é um clube exclusivo.
C&: Falando de consciência, a que se referem as cores gráficas e as formas da identidade da Bienal de Berlim?
GN: A camuflagem dazzle é também um tipo de negação – a ideia foi retirada da narrativa histórica de guerra. Na Primeira Guerra Mundial, navios foram pintados em diferentes padrões de cores de forma que não constituíssem alvos fáceis. Isso significava que qualquer pessoa que estivesse tentando atacá-los não teria certeza da direção que os navios estavam tomando. É uma história interessante porque tal tática tinha o intuito de turvar a direção, o tamanho e a intenção do navio, mas quando se lê mais sobre isso, percebe-se que não foi de grande ajuda – os navios pintados em dazzle foram atacados. Quiçá até mais que aqueles que não tinham essa pintura.
C&: Porque tentaram se tornar invisíveis?
GN: Sim. Não invisíveis per se, mas visíveis de forma diferente. Porque obviamente podiam ser vistos. Para nós a busca pela linguagem é a busca por uma linguagem que seja clara de forma diferente. Falar das mesmas coisas que têm sido faladas ou escritas por centenas de anos, descobrir se podemos dizê-las com outro tipo de clareza. Isso também permite que essa posição seja opaca, no conhecimento de que a opacidade é um tipo diferente de clareza.
Julia Grosse é a editora-chefe da C&.
Traduzido do inglês por Heitor Augusto.
Esta entrevista foi originalmetne publicada na nova revista impressa C& Print Issue #9, que pode ser acessada na íntegra aqui.