A artista, pesquisadora e educadora diz que “gostaria de tocar em assuntos que foram varridos para debaixo do tapete na sociedade brasileira”. Doutora em Artes Visuais pela USP e especialista em gravura pelo London Print Studio, Rosana Paulino tem participado ativamente de diversas exposições no Brasil e no exterior.
Rosana Paulino, Página do livro HISTÓRIA NATURAL?, 2016. Técnica mista sobre papel. 28,5 x 38,0 cm.
Rosana Paulino, As Amas, 2009. Vista parcial da Instalação. Parafina, fita de cetim, imagem digital e flores. Dimensão variável.
Rosana Paulino, As Riquezas Desta Terra, 2017. Impressão digital sobre tecido, linóleo, recortes, tinta e costura 96,0 x 126,0 cm.
C& América Latina: Recentemente, você disse que o sujeito negro e urbano é produtor na música e até na literatura, mas muito pouco nas artes visuais. Por quê? Como você, que começou a produzir no começo dos anos 1990, se viu nesse contexto?
Rosana Paulino: As artes visuais negras no Brasil historicamente são muito ligadas ao religioso – desde o Barroco ao Modernismo e, em alguns casos, ainda hoje. Acho que esse campo de produção do religioso era de certo modo permitido aos sujeitos negros. Rubem Valentim, Mestre Didi e Emanoel Araújo, por exemplo, trabalharam as questões negras a partir de seus envolvimentos com as religiões, o que não deixa de ser um pouco natural, visto que os três são baianos, ligados ao ambiente religioso. No meu caso, que venho da periferia de São Paulo, da Freguesia do Ó, e que ouvi Racionais MC’s na adolescência, qual é a herança negra que estava ao meu redor? Não era a dos cultos afro-brasileiros. Isso obviamente não é nenhuma crítica a esses artistas. Quero enfatizar que não estou imersa nesse universo como eles estavam. Então, como me encontro? Quais são as minhas referências? No início da década de 1990, essas eram as perguntas que eu fazia, para as quais não tinha uma resposta muito pronta.
C&AL: Mais de uma vez você disse que sua principal preocupação como artista consiste em entender a posição que a mulher negra ocupa no tecido social brasileiro. Poderia falar sobre o que detectou, nesse contexto, em suas pesquisas e obras?
RP: Nos dados do IBGE, a mulher negra é a base da base da pirâmide social no Brasil. É a que mais chefia famílias sozinha, é quem tem a menor renda. Ela está abaixo do homem negro, que por sua vez está abaixo da mulher branca, que está abaixo do homem branco. Gostaria de entender isso no meu trabalho. Olho para essa questão a partir do meu entorno, a partir das meninas negras aqui da vila e também das mulheres da minha família. Minha mãe e minha tia são mulheres excepcionalmente inteligentes, então o que aconteceu com elas? Por que uma mulher com inteligência tão notável, como minha mãe, não conseguiu desenvolver suas habilidades? Como é o crescimento de uma mulher que não faz parte de um modelo de beleza que exclui? É possível uma mulher negra ser bem-sucedida? Olhando a televisão, às vezes parecia que a gente estava na Holanda, na Suíça. Esse não era o meu cotidiano. Então, dentro do recorte da raça, eu também tive que fazer o recorte de gênero para entender minha própria condição no mundo.
C&AL: De que maneira você acredita que seu trabalho como artista pode propor alguma mudança na maneira como a mulher e o homem negros são vistos na sociedade? Para quem você imagina dirigir o seu trabalho?
RP: Acho que todo artista faz primeiro o trabalho para si próprio. Mas também penso muito se o que estou fazendo vai atingir as pessoas. Penso muito se meu trabalho vai alcançar as pessoas e como vai alcançar. Não tanto em quem alcançar. Gostaria de tocar em assuntos que foram varridos para debaixo do tapete na sociedade brasileira, principalmente nas artes visuais, como se não existissem. Procuro ser efetiva na forma como me comunico, daí eu ser tão perfeccionista. Mas na arte isso é também uma questão de forma, o que eu falo precisa ter elaboração formal. O principal é que quero levantar questões. Não posso saber se a maneira como homens e mulheres negras são vistos na sociedade vai mudar ou melhorar, mas levanto questões. Quero que as pessoas pensem o porquê. Por que a mulher negra é a base da pirâmide? Por que temos um país que mata sua própria juventude? Por que isso é tão naturalizado? Ou seja, por que aceitamos que seja assim? Isso de aceitarmos é o que me dói mais.
C&AL: Sua obra (e sua pesquisa também, como a tese desenvolvida na ECA/USP) é bastante marcada por um debate a respeito da memória e da representação do corpo negro na história da sociedade brasileira. Poderia falar um pouco sobre isso?
RP: O corpo é uma máquina fantástica, mas penso sobretudo em uma questão política. O que as representações do corpo negro dizem sobre nossa sociedade? De que maneira estas representações contribuem para a naturalização dos lugares destinados à população negra na sociedade? Em larga medida, procuro fazer estas perguntas por meio de apropriações de fotografias, como o álbum de família ou imagens da história. A representação dos negros e negras na história da arte brasileira, desde os viajantes, é ligada ao trabalho bruto. A fotografia corrobora essa ideia. Eram feitos cartões-postais no Brasil e enviados para a Europa como suvenir, e eles trazem a ideia do negro como servil, como um elemento exótico e selvagem. Essas imagens constroem a ideia que temos dessa população hoje em dia. Por outro lado, gosto de pensar as imagens de uma forma meio homeopática. Se na história da arte as imagens foram usadas para marcar uma posição de sujeição para o corpo negro, que seria mais músculo do que intelecto, então intervir nessas fotografias e alterar seus significados para mim tem um sentido de cura.
C&AL: Em palestra recente, você falou sobre a imagem do negro na história das artes visuais brasileiras, em um longo percurso desde o Brasil colonial até os dias de hoje. Poderia comentar sobre alguns momentos/imagens que considera mais representativos neste contexto?
RP: O que mais me chama atenção é um quadro do Modesto Brocos, A redenção de Cam (1895). O quadro representa uma avó negra, provavelmente ex-escravizada, levantando as mãos para o céu. A filha mestiça, com um bebê branco no colo, e um homem branco sentado na soleira de uma porta, provavelmente o pai do bebê. Esse menino levanta as mãos para a mulher negra como se a estivesse absolvendo de seus pecados. Qual é a ideia de fundo desse quadro? Ele traz a solução do embranquecimento da população para o país sair do “atraso”. É uma questão que estava sendo debatida pela ciência daquele período. Este quadro é levado para Londres no primeiro congresso de eugenia, como exemplo daquilo que se espera para o Brasil: a eliminação da população negra. É possível considerar que isso tenha sido uma política de Estado. Obviamente é uma coisa horrível e perversa, mas a questão é que traz prejuízos até hoje para a gente. Alguns quadros do Albert Eckhout, como Mulher negra e criança (1641), também chamam minha atenção, porque começam a construir a imagem da mulher negra como exótica. Já no século 20 lembro de uma pintura em que a mulher negra aparece representada como empregada doméstica: Limpando metais (1923). O que se conclui dessas imagens? Os lugares da mulher negra são o exotismo, o trabalho doméstico ou a exclusão do projeto de nação. Quando o artista negro, por outro lado, começa a se autorrepresentar, a situação muda de figura.
C&AL: E como você avalia que a situação muda?
RP: Agora quem fala sobre a população negra é também quem vive suas dúvidas, seus dilemas. São dados de diversidade. Só pode trazer certas questões quem passou por elas. Não digo que só os negros possam falar sobre as questões, mas são diferentes as percepções. As minhas questões como artista negra não eram objeto de estudo e representação na arte contemporânea brasileira quando comecei a produzir. Obras como Gargalheira ou Sonho de atleta, do Sidney Amaral, só podem ser feitas por quem passou por aquele universo na adolescência. O que mais me incomoda, na verdade, é a formação eurocêntrica, como se outras populações não produzissem arte. Sou formada em um momento em que a arte conceitual predomina na produção brasileira. Eu olhava aquilo e não me sentia representada. Como se só esse parâmetro eurocêntrico, branco e quase sempre masculino pudesse ser arte. Então procuro minhas raízes, procuro a costura, que aprendi na infância, as fotos de família. Quando começo a produzir, o incômodo é mais este: eu não me via no que era produzido naquele momento.
C&AL: Você costuma falar que a produção de artistas negros no Brasil nunca foi tão rica e intensa quando hoje, quando se fala também de uma “descoberta” da arte de matriz africana pela mídia internacional. Como você analisa esse fenômeno?
RP: Como algo não tão simples de ser analisado, até porque estamos no olho do furacão. O que noto no Brasil é um grande número de artistas negros, com excelente formação, que tentam pensar o país de um jeito diferente. Temos aí um dado novo, cujas consequências ainda são difíceis de analisar. Em um plano internacional, acho que o mercado europeu passa por um esgotamento, e então busca-se no “diferente” uma possibilidade de se renovar. Não deixa de ser também uma armadilha. Por outro lado, noto muitos artistas africanos se deslocando e levando um modo de pensar novo para a Europa. É um momento complexo, com diferentes situações. A retomada de ideias fascistas e excludentes se dá no mesmo período em que há um esforço para construir um pensamento mais universalista, que busca um diálogo maior com o outro.
Victor da Rosa é escritor e doutor em Literatura. Vive e trabalha em Belo Horizonte.