Outro 68!

As artistas não brancas pioneiras de espaços alternativos de arte no México

Apesar do início dos protestos contra o regime no México em 1968, as narrativas de feministas indígenas e artistas não brancas continuaram a ser deixadas de fora como partes importantes do corpo de oposição ao sistema cultural dominante nos anos 1970. A segunda onda do movimento feminista contemporâneo no México pós-revolucionário foi a força motriz por trás da transformação da colaboração entre grupos ativistas e diversos coletivos feministas.

Em meio a revoltas globais dos estudantes bem como golpes militares e insurgências da guerrilha na América Latina, os protestos no México irromperam em julho de 1968. Os tumultos de 2 de outubro de 1968 no distrito Tlatelolco da Cidade do México não apenas impactaram fortemente as ruas da capital, mas também foram a arena de uma ampla consolidação de movimentos sociais para além de limites e classes. Em 1966 e 1967, movimentos estudantis, feministas e de trabalhadores, como o Mujeres en Acción Solidaria (1971) perseguiam uma agenda comum nas metrópoles Chihuahua e Guerrero. Suas demandas concentravam-se na reforma do sistema educacional, em confrontar a violência da polícia e das autoridades militares e na democratização do regime autoritário. Em sua resistência contra o regime, os movimentos de massa de orientação estudantil majoritariamente de classe média tinham uma tendência a marginalizar as abordagens feministas, assim como as experiências, vozes e formas artísticas de expressão de artistas não brancas.

Isso levou artistas e grupos de ação feministas em áreas urbanas a se organizar no contexto da política cultural e a ocupar novos espaços. Inspirados pelos oposicionistas Contemporáneos Grupos de diversos gêneros dos anos 1930, dos quais vários integrantes eram considerados como provenientes de grupos marginalizados da população, o novo movimento de Los Grupos, que emergiu no início dos anos 1970, se distinguiu dos movimentos artísticos anteriores por não mais se preocupar com uma estrutura nacional ou em fazer arte para construir uma identidade nacional. Acreditavam na união de diferentes conjuntos de coletivos artísticos em nível regional e internacional, oferecendo a artistas feministas pós-revolucionárias para além das construções de diferença, inclusive das fronteiras de gênero, etnia e classe, a chance de escapar de espaços e gêneros dominados pelos homens e politizar conceitos de modernização urbana, erotismo feminino, o direito à sexualidade sem propósitos reprodutivos, a descriminalização do aborto, a alienação do trabalho doméstico e as essencializações de etnia e gênero do governo. Espaços culturais contraculturais e subversivos foram criados por ativistas e feministas e artistas não brancas e moldados por um envolvimento crítico contínuo com as práticas e os mecanismos dos movimentos sociais e do mundo da arte. Esses espaços eram locais para novas formas de obras em fotografia, performance, cinema e arte conceitual que contrabalançavam processos que silenciavam, excluíam e marginalizavam suas vozes efetivamente dentro dos movimentos de protesto mais amplos, bem como nas galerias e nos museus nacionais.

O grupo Polvo de Gallina Negra, fundado em 1983 pelas artistas feministas Maris Bustamante (nascida em 1949), Mónica Mayer (nascida em 1948) e Rowena Morales (nascida em 1948), bem como outros grupos feministas que se seguiram, incluindo Bio-Arte, Coyolxauhqui Articulada e Tlacuilas y Retrateras, faziam parte de um movimento contracultural extenso e vibrante. Ao lado de suas colegas, ativistas e artistas e mulheres* não brancas, como Ana Victoria Jiménez (1941) e Guadalupe García-Vasquez, cujas narrativas quase foram apagadas da narrativa histórica do movimento de arte feminista, moldaram essas estruturas alternativas e práticas revolucionárias ou de vanguarda diferentes, que lhes permitiram expressar coletivamente sua política e estética indígena.

Coletivos como esses e seus precedentes organizaram grupos de discussão informais para artistas feministas, exibições coletivas de arte (por exemplo, Intimate Collage, em 1977) e novas galerias e espaços culturais. As artistas expressavam suas convicções artísticas em performances e obras deconstrutivistas solenes. Nas obras mais conhecidas, os temas recorrentes incluíam corpo, subjetividade e poder, ambiguidade e dualidade de gênero e sexualidade, e a cultura popular mexicana, altamente específica em matéria de gênero e permeada de discursos hegemônicos. Elas enfatizavam o significado da solidariedade e do trabalho coletivo e entendiam que incorporavam uma crítica às estruturas de propriedade e ao elitismo do mundo da arte.

Durante os anos 1970, neomuralistas, artistas gráficas e escultoras lidaram de várias maneiras com questões de estabelecimento de identidade, integrando gêneros, estilos e tópicos do nacionalismo revolucionário, realismo social e indigenismo, para desestabilizar construções normativas utilizadas em 1970 no México para definir os parâmetros da arte politicamente comprometida, das intuições de arte e práticas artísticas como empreendimentos exclusivamente masculinos e brancos. Suas instalações, performances e exposições coletivas tornaram visíveis as continuidades e interseções de sua arte com os aspectos políticos da revolução mexicana dos anos 1970, moldando o gênero da “arte feminista” para além das fronteiras nacionais em 1977.

No contexto internacional, a retórica e as representações dos coletivos artísticos mexicanos estabeleceram impulsos. A emergência de um movimento transnacional de arte feminista deflagrou um coletivo de todas as mulheres chicanas – Mujeres Muralistas, com sede em São Francisco, Califórnia – e outros fóruns feministas radicais em Buenos Aires e no Rio de Janeiro. Elas compreendiam a si mesmas como uma comunidade contra a exclusão de identidades e narrativas de mulheres*, indígenas e artistas não brancas do establishment artístico eurocêntrico, elitista e patriarcal. Pilotando os movimentos sociais masculinos e de classe média e o mundo da arte nos anos 1970, estabeleceram os fundamentos para futuros espaços culturais e galerias alternativas que exploravam a arte para além dos estereótipos normativos e binariedades divisivas relativas a gênero e etnia.

Tudo isso permanece como uma tentativa inacabada de questionar gêneros e fronteiras disciplinares e – da maior importância – as narrativas históricas que tradicionalmente definiam a própria emergência do movimento da arte feminista no México. Há uma responsabilidade crescente de questionar e desafiar essas narrativas e vozes dominantes do passado, para que possa ser conquistada uma nova produção de conhecimento nos campos da arte, dos feminismos e dos movimentos sociais.

Referências
Arias, Carlos, Maris Bustamante, Mónica Castillo, Lourdes Grobet, Magali Lara, Mónica Mayer, Lorena Wolffer. “¿Arte Feminista?” Debate Feminista 23, 2001, 277-308. http://www.jstor.org/stable/42624636.

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Giunta, Andrea. (CONICET / Universidad of Texas at Austin, Estados Unidos). Feminist Disruptions in Mexican Art, 1975-1987. / Disrupciones feministas en el arte mexicano, 1975-1987 Artelogie, nr. 5, 2013.

Gutierrez, María Laura. “Ni útil, ni exótico. Deconstruyendo la(s) mirada(s). Una revisión del arte feminista en Latinoamérica.” Em: Dirección Editorial: 115.

McCaughan, Edward J. “Navigating the Labyrinth of Silence: Feminist Artists in Mexico.” Em: Social Justice 34, nr. 1 (107) (2007): 44-62. http://www.jstor.org/stable/29768421.

Stefania Vittori é ativista política brasileira e assistente de pesquisa no Departamento de Sociologia “Diversidade e Conflito Social“ na Universidade Humboldt de Berlim. Seu campo de pesquisa inclui políticas e discursos de migração, teorias feministas, desigualdade política e social, com ênfase nos movimentos políticos e sociais na América Latina e África do Sul.​

Traduzido do inglês por Renata Ribeiro da Silva.

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