A artista nascida em Barbados discute história colonial e traumas, buscando diálogos e interações solidárias. Nós conversamos com Alberta Whittle sobre a necessidade da cura coletiva, os legados assustadores e a cena artística caribenha.
Alberta Whittle, Between a whisper and a cry, filme, 2019. Cortesia da artista.
Alberta Whittle, Right of Admission. Performance. Since 2014. Courtesy of the artis
Alberta Whittle, Studies in Welcome V, 2015. Photograph. Photo: Nick Whittle. Courtesy of the artist
Alberta Whittle nasceu em 1980 em Barbados, nas Pequenas Antilhas, e atualmente divide seu tempo entre Barbados, Escócia e África do Sul. Whittle é artista, pesquisadora, escritora e curadora. Em 2018, ela fez residência na RAW Academie da RAW Material em Dakar, e venceu o prêmio Margaret Tait Film Award 2018/9.
C&AL: Conte um pouco sobre o que a levou a se tornar uma artista.
Alberta Whittle: Sempre me senti encorajada a me tornar artista. Tenho muita sorte por ter pais que me apoiaram tanto e que também se formaram em escolas de arte. Meu pai é artista e já trabalhamos juntos várias vezes. Sofro de fibromialgia e recebi o diagnóstico quando era criança. Passava bastante tempo no meu quarto, desenhando, pintando ou criando colagens. De certa forma, sinto-me como se ainda estivesse recuperando algumas das ideias nas quais trabalhava quando ficava sozinha no meu quarto.
C&AL: Seu trabalho aborda noções dos legados coloniais, a fim de criar uma consciência a respeito de cura coletiva e reparações. Você poderia falar um pouco mais sobre o que quer dizer com cura coletiva e reparações?
AW: O que busco em meu trabalho artístico e minha prática curatorial é a esperança de estabelecer diálogos significativos, em que nós possamos nos reunir, ouvir e compartilhar abertamente. Precisamos entrar em um estado de escuta coletiva, o que, espero, nos levará a momentos de cura. No que se refere a reconhecer o quanto a escuta radical pode ser crucial quando tratamos de temas desconfortáveis, em especial a justiça reparatória, o trabalho de Niv Acosta sobre o descanso como forma de resistência tem sido decisivo. Niv sugere que a cura pode ser alcançada ao se encontrar tempo para umas “black power naps” (“sonecas do poder negro”), ou seja, se os corpos negros encontrarem tempo para priorizar o descanso, já que estes têm sido historicamente pressionados a aderir a uma dinâmica de superprodução e trabalho excessivo. Transgredir as expectativas racializadas sobre o trabalho das pessoas negras tem se tornado uma grande preocupação dentro da minha prática: como posso garantir de que as interações entre nós se tornem mais solidárias e críticas?
erta Whittle, Right of Admission. Performance. Since 2014. Courtesy of the artis
C&AL: Como sua origem e sua formação influenciam seu trabalho?
AW: Vou contar duas histórias. A primeira é que meus pais eram membros do Museu e Sociedade Histórica de Barbados, portanto íamos muito lá quando eu era criança. Lembro-me de estar em uma das salas, onde uma família de turistas britânicos também se encontrava. Seus dois filhos perguntavam sem parar: “Por que nós temos que olhar para essa história? Isso não tem nada a ver comigo”. A segunda história é que, logo que cheguei à Grã-Bretanha, ainda criança, Steven Lawrence havia sido assassinado. [Nota do editor: Lawrence foi um adolescente britânico negro da região sudeste de Londres, assassinado em um ataque com motivações raciais, enquanto esperava por um ônibus, no dia 22 de abril de 1993.]
Esses dois incidentes ocorreram em um período de um ano e tiveram um grande efeito sobre mim. A primeira história me fez perceber que há um sentimento de alienação e ambivalência entre os britânicos em relação à história brutal entre a Europa e o Caribe. Essa relação, representada no museu em Barbados, foi percebida por essa família como não tendo relação alguma com ela. A escravidão, o colonialismo e até mesmo as vidas negras: nada disso tinha a ver com o cotidiano deles. Quando me mudei para a Grã-Bretanha, me dei conta de que não havia conhecimento ou história sendo ensinados a respeito do que aconteceu durante o Império Britânico no Caribe ou na Commonwealth, a Comunidade das Nações. Achei aquilo bastante perturbador. Percebi que minha vida e minha história não tinham importância na Grã-Bretanha.
Através da perda de Steven Lawrence e de um sistema que apoiou o apagamento de sua vida, aprendi que as vidas negras e a morte negra não significam nada. Muitas das razões pelas quais realizo meu trabalho são uma forma de reação ao terror derivado da ideia de que minha vida possa não ter importância e que minha história é descartável.
C&AL: Quais são suas estratégias para relacionar as histórias do passado com o momento presente?
AW: Acho que as histórias do passado e do presente já estão interrelacionadas. Ao observarmos o discurso de David Lammy em meu vídeo Sorry, not sorry (2018), podemos notar que ele trata de eventos ocorridos há trezentos anos e insiste em afirmar que eles estão conectados à maneira como compreendemos nossas condições atualmente. Ao observarmos a história não contada da Geração Windrush, que apenas agora tem sido revelada pela imprensa, descobrimos que o governo britânico não havia se preparado totalmente para que esses cidadãos britânicos de origem caribenha migrassem para a Grã-Bretanha e tampouco os acolheu. A Lei da Nacionalidade Britânica não foi criada para negros ou pessoas de cor, mas sim para brancos que desejavam se mover mais facilmente pela Comunidade das Nações. Tudo isso está conectado à maneira como entendemos o Outro e como o Outro é interpretado, o que, por sua vez, se relaciona às histórias do colonialismo e da escravidão. Isso influencia significativamente as maneiras pelas quais certos corpos e certas histórias são sistematicamente tornados descartáveis.
C&AL: Você conhece eventos de arte no Caribe que contribuam para a formação de uma “cena artística caribenha”?
AW: Conheço mais as iniciativas do Caribe anglófono. Por exemplo, a Alice Yard, iniciada por Chris Cozier, Nicholas Laughlin e Sean Leonard em Trinidad. A Fresh Milk em Barbados, fundada por Annalee Davis, promove diálogos entre artistas locais e internacionais de toda a Diáspora. Em conjunto com Holly Bynoe, Davis criou o projeto de pesquisa Tilting Axis, um encontro itinerante que viaja com a intenção de estabelecer novas redes de contatos. Há também outros movimentos como a Carifesta, que começou no princípio dos anos 80 e viaja pelo Caribe a cada dois anos, embora tenha sido adiada algumas vezes por falta de recursos ou questões ambientais. Esses encontros abrangem tudo o que está cpntido na criatividade caribenha, da dança à performance, passando por artes visuais, artesanato e literatura.
C&AL: Existe um senso de identidade artística caribenha?
AW: Sim, com certeza. A profundidade e a expansão de pesquisas importantes conduzidas no Caribe têm ganhado espaço internacionalmente. Estamos começando a receber apoio de museus e instituições internacionais, principalmente patrocínio para artistas que vivem fora do Caribe. Quando surge uma oportunidade no exterior, a maioria dos artistas provavelmente irá aproveitar a chance de estar em outro lugar. No entanto, há pessoas fazendo grandes compromissos para permanecer e trabalhar localmente, o que considero louvável.
Entrevista realizada por Raquel Villar-Pérez, escritora e curadora espanhola de arte residente em Londres.
Tradução para o português por Uirá Catani.