PlusAfroT

Deslocamento como coreografia

Residência reúne oito artistas do Brasil em Munique. Em um país com história de colonialismo, os deslocamentos físicos e simbólicos da mudança de perspectiva aparecem nos corpos e nas obras dos residentes.

Entre os participantes da Residência PlusAfroT estão Grace Passô, Mahal Pitta, Ana Paula Mathias, Lenna Bahule, Malú Avelar, Iagor Peres, Guinho Nascimento e Rebeca Carapiá.

Controle social e vulnerabilidade

A ideia do deslocamento – temporal e espacial –, e de como esse movimento influi nos corpos, nas reflexões e nas pesquisas artísticas, permeia o processo e o cotidiano da residência. Como relatam os curadores, “no contexto alemão, vivemos ao mesmo tempo, como grupo, os efeitos da colonialidade e seu sofisticado sistema de controle social, aos quais estão submetidos, por predeterminação, os corpos racializados, dissidentes e vulneráveis. E vivemos também os efeitos da decolonialidade como resistência, ação e rasura a partir das nossas presenças”.

Segundo Lima e Lopes, a Residência PlusAfroT não foi um programa onde se debateu a decolonialidade, mas que, sem sombra de dúvidas, essa experiência, com seus paradoxos e conflitos, foi vivida no próprio corpo. “Isso nos lança a uma compreensão de que nosso movimento nos faz estar interessados não no discurso, mas na forma e no rastro que estamos deixando com essa coreografia pelo caminho”, dizem.

Sobre a influência da residência em sua prática artística, Iagor Peres, um dos oito residentes, relata que o deslocamento transatlântico – sair de um clima completamente tropical e ir parar em um frio extremo – afetou diretamente a materialidade do trabalho desenvolvido. “Não encontrar os mesmos materiais que eu utilizava no Brasil, como as colas e tipos de cacaus, me fizeram descobrir outras maneiras de trazer formas à matéria”, diz Peres.

Em relação ao processo da residência, Diane Lima e Mario Lopes partiram de um desejo de destituir da curadoria uma posição hierárquica e centralizadora no que diz respeito à criação de um programa e cronograma de trabalho. De forma coletiva, foi criado um conjunto de ações que se dividiam entre atividades do corpo e de experimentação, grupos de leitura, aulas de alemão e jam sessions para improvisação, além da possibilidade de intervenção para desfazer as próprias estruturas, desde que essas respondessem às questões críticas ou necessidades expressivas do grupo.

Subjetividades em conflito

O corpo, no entanto, não passou impune aos efeitos do deslocamento e seus conflitos. “Com isso, o grupo produziu fugas e burlou quase em 100% todas as atividades propostas por ele mesmo, abrindo uma grande discussão em torno das ideias de utopia, autonomia e saúde mental”, relatam Lima e Lopes.

Para Peres, a residência foi o lugar de confirmação do não estereótipo do negro: “Tudo se passou em um espaço que só tinha pessoas racializadas e em que as subjetividades entraram todas em conflito. Essa experiência já declara o quão inverídico é o discurso de massificação do negro, de entendimento do que é esse ‘negro’. Essa parte foi bem gostosinha, de perceber que o mundo realmente ruiu”, conta.

Lost Body

A mostra Lost Body – deslocamento como coreografia foi organizada como resultado dos processos artísticos desenvolvidos ao longo da residência pelxs artistas – com suas fugas, conflitos e estranhamentos. E é também resultado da reflexão acerca dos efeitos que geram esses conflitos em “corpos-estranhos”, em contextos estrangeiros, e do que podem as práticas artísticas como dispositivos de mediação, questionamento, atrito e diálogo.

Inspirada na coleção de poesia de Aimé Césaire (1913-2008), a reunião dos trabalhos foi imbuída da convicção de que a existência negra só é possível de acontecer na e através da linguagem, e é este o exercício diário que foi trabalhado com artistas em residência. “Além disso, nos interessa pensar os efeitos do Tempo Negro nos corpos, noção que encontra lugar fundamental de ressonância com a pesquisa de Mario Lopes sobre conflitos normativos e no entendimento sobre os deslocamentos dos corpos no espaço e no tempo como coreografias”, resume Diane Lima.

Diane Lima é curadora independente, pesquisadora, diretora criativa e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É idealizadora da plataforma de pesquisa e experimentos curatoriais NoBrasil (2014), da iniciativa AfroTranscendence (ou Afro-T) (2015), da série de encontros Diálogos Ausentes (2016/2017) e do Valongo Festival Internacional da Imagem (2018).

Mario Lopes é coreógrafo, articulador e gestor cultural. Diretor-geral e um dos curadores da Plataforma PLUS e do coletivo internacional veiculoSUR, programa de imersão coreográfica que liga as cidades de São Paulo, Munique, Montevidéu, Santiago, Lyon e Helsinki.

Lorena Vicini é pesquisadora e gestora cultural. Coordenou o projeto “Episódios do Sul” do Goethe-Institut São Paulo (2016-2018) e atualmente é pesquisadora da documenta studies, plataforma de estudos ligada à criação do documenta Institut, com o objetivo de oferecer um espaço crítico para o debate de estudos curatoriais.

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