Sem medo de experimentar, o artista brasileiro lança seu olhar arguto para processos que extrapolam a corporeidade e vivem em constante modificação.
Vista geral da exposição Estrutura para campos densos, individual do artista no Centro Cultural São Paulo, em 2020. Foto: Wallace Domingues/Divulgação
“Inquietude” é uma boa palavra para definir Iagor Peres. Aos 27 anos de idade, ele já transitou por diferentes linguagens artísticas e uma das matérias-primas recorrentes em suas obras vive em mutação. Nas artes visuais desde 2016, o artista brasileiro foi um dos agraciados no ano passado pelo fundo holandês Prince Claus. Na entrevista a seguir, ele fala sobre investigações e descobertas.
C&AL: Você vem da dança?
Iagor Peres: Do teatro e da dança. Na infância eu morava no interior do estado do Rio de Janeiro e assisti a um espetáculo teatral durante um passeio da escola. Achei aquilo incrível. Acabei mudando para uma escola onde havia curso de teatro e foi ali, com uns nove anos de idade, que dei meus primeiros passos no palco. Na adolescência, quando morei em São Paulo com minha família, frequentei uma série de cursos livres e cursei o Teatro da Fundação de São Caetano. Foi aí que comecei de fato a me aproximar das artes do corpo e aprender a aprender através dele. Em 2010, aos 15 anos, voltei para o Rio de Janeiro disposto a largar o teatro, porque estava um pouco cansado do meio, e migrei para dança porque entendia que esse contato com o corpo me fazia bem, me levava, por exemplo, a perceber aspectos mais complexos das relações humanas. Três anos mais tarde fui estudar Sociologia na Universidade Federal Fluminense (UFF), curso que não conclui, e comecei a cursar informalmente várias disciplinas na área de artes com a meta de pedir transferência de curso. Mas essa ideia não se concretizou porque mudei para Recife.
Frame da videoarte Ali entre nós um invisível obliterante (2020)
C&AL: Como você fez a transição definitiva para as artes visuais?
IP: Foi natural, um desdobramento do que vinha fazendo. Quando era bailarino e videomaker, comecei a produzir videodanças no Rio de Janeiro e percebi a possibilidade de realizar um trabalho com linguagem híbrida. Até hoje a mistura de diferentes linguagens, de forma que seja impossível dissociar uma da outra, permeia minha trajetória. Mas, voltando à sua pergunta, o vídeo e a videoinstalação, além da performance, me inseriram no ambiente das artes visuais, que entrei de fato em 2016. Nesse ano fui passar uma semana de férias em Recife, cidade que não conhecia. Eu me apaixonei pelo lugar e resolvi ficar. Logo estabeleci uma forte relação com o circuito de arte local, entrei para uma companhia de dança e para o CARNI – Coletivo de Arte Negra e Indígena. Isso foi há seis anos. Hoje vivo entre Rio de Janeiro, São Paulo e Recife. Mas meu aluguel permanece em Recife (risos). Moro em uma casa chamada Box Preparação, que também é ponto de cultura e uma das sedes do CARNI.
Sem título 2, escultura de ferro e pelematerial presente na exposição Estrutura para campos densos. Foto: Wallace Domingues/Divulgação
Até hoje a mistura de diferentes linguagens, de forma que seja impossível dissociar uma da outra, permeia minha trajetória.
C&AL: Como a dança influenciou seu trabalho nas artes visuais?
IP: De várias maneiras. Na dança tive contato com a kinesfera [conceito desenvolvido na década de 1960 pelo artista, coreógrafo e pensador da dança Rudolf Laban], que trata do espaço pessoal que envolve os movimentos de nosso corpo. A ideia é que, ao visualizar seus movimentos nesse espaço pessoal, o sujeito passe a compreender sua estrutura de corpo espacializado e a redesenhar sua relação com o ambiente por meio do movimento. Isso abriu minha cabeça para uma série de questões. Percebi que nossos corpos poderiam ocupar espaços maiores do que estão fadados a ocupar. Além disso, com o movimento podemos modificar atmosferas opressoras ou não em que estamos inseridos. Pensar esses campos que extrapolam o movimento me atentou para processos que não estão visíveis, que excedem a corporeidade e que se modificam constantemente.
Trecho do jogo virtual When the matter is gone (2021), que trata das diferentes formas de desaparecimento.
C&AL: É o caso da pelematerial, presente em alguns trabalhos que você desenvolveu?
IP: Sim. Após esse período entre teatro e dança, buscava outra maneira de falar do corpo. Não queria mais estar no front, com meu corpo exposto. Em 2017, comecei a misturar vários materiais em banho-maria, no fogão da minha casa, em Recife, até chegar a um resultado que julguei interessante pela plasticidade. Acompanhei essa mistura durante um tempo: viajei, voltei, fui percebendo as transformações que ela sofria. Nossa relação aconteceu assim. Não foi necessariamente programada, mas foi gestada, é fruto de um desejo de me ausentar e ainda assim estar presente. Desde o início entendi que a pelematerial não poderia ser só uma escultura ou uma matéria estática. Era algo vivo que também dançava e apresentava essa performance ao longo do tempo. A pelematerial é, de certa forma, uma extensão do meu corpo e me leva a uma série de reflexões. Entre elas, questionar a ideia de raça, conceito inventado pelo capitalismo, que tira o valor de determinado corpo pra fazer com que esse corpo, tido como sem valor, produza valor para outros corpos. Se a ideia de raça encobre e despersonifica determinados corpos, a pelematerial também age nesse sentido. Ao cobrir um objeto, ela expõe seu limite ao mesmo tempo em que o deforma.
Sem título, trabalho da série de monotipias A segunda forma da ausência em que o artista dá prosseguimento à pesquisa com pelematerial. Foto: Ivan Padovani/Divulgação
C&AL: O que você tem feito no momento?
IP: Desde o ano passado venho trabalhando em A segunda forma da ausência, uma série de monotipias que dá prosseguimento à pesquisa com pelematerial. Porém, nessas gravuras retiro a pelematerial das superfícies para que eu possa lidar com os resquícios e os rastros deixados por ela. A terceira fase desse processo de pesquisa é o jogo When the matter is gone (2021), que desenvolvi durante a pandemia. Nesse trabalho, meu primeiro em ambiente virtual, penso sobre as diferentes formas de desaparecimento e faço isso por meio dos corpos sonoros que desenvolvi com Anti Ribeiro. Além disso, finalizo Da frequência no tempo, obra em grande escala com pelematerial para o Parque das Esculturas, no estado do Espírito Santo. Por fim, coordeno com Ariana Nuala a primeira residência artística voltada para os doze integrantes do CARNI – Coletivo de Arte Negra e Indígena. Fundamos o grupo em 2016 e desde então tivemos uma atuação externa, buscando abrir espaço na cena de Recife para artistas negros e indígenas da região. Agora, vamos lançar um olhar interno para refletir sobre nossas próprias produções poéticas. Mas não vamos deixar de compartilhar com o público nossas reflexões. Estão previstos, a partir do final de maio, alguns encontros online. O primeiro será com a filósofa Denise Ferreira da Silva e, na sequência, acontece uma conversa com a educadora e pesquisadora Mara Pereira.
Ana Paula Orlandi é jornalista e mestre pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.