Nome de destaque na cena teatral da Bahia que vem ganhando projeção também nas artes visuais, Diego Araúja articula outras concepções de temporalidade e formas de conceber uma nova língua entre países afro-diaspóricos a partir da performance.
El Encuentro de las Tierras: Diego Araúja, Matchume Zango e Lobadys Pérez - Brasil, Moçambique e Colômbia. Cortesia do artista.
Diego Araúja, QUASEILHAS. Foto: Shai Andrade.
El Encuentro de las Tierras, Araúja, Zango e Pérez – Brasil, Colômbia e Moçambique. Cortesia do artista.
Diego Araúja começou a pensar sobre o tempo por uma razão muito básica: era algo que lhe faltava. Desde cedo viu-se atropelado pelo “tempo da sobrevivência”, como passou a chamar. O nome autoexplicativo é uma realidade conhecida para quem tem uma rotina massacrada pelo trabalho e não sobra espaço para outra coisa além disso. Mais familiar ainda para pessoas negras vivendo no Brasil. “Comecei a me interessar pelo tempo porque foi algo que nunca tive,” explica o artista baiano. “Do lugar de onde eu venho, o tempo da sobrevivência não deixa espaço para o tempo criativo, fazer isso é quase uma ousadia ou até uma vingança.”
Pensar em outros formatos de temporalidade e de percepção se tornou um elemento central na produção do artista criado na periferia de Salvador, na Bahia, e onde hoje é um dos nomes de destaque nas artes cênicas e na performance. Desde 2013, Diego passou a desenvolver um processo de “Estética Para um Não-Tempo”, com a intenção de instaurar um “tempo qualitativo que permita a produção de memórias afro-diaspóricas emancipadas”, como define. Seu trabalho mais conhecido, em que colocou esses conceitos em prática, foi a peça QUASEILHAS (2018), dirigida por ele e em colaboração com nomes de diversas áreas, aproximando-se mais do campo da arte expandida ou transdisciplinar.
O formato nada convencional guarda semelhanças com o teatro imersivo, com bastante influência do universo digital, em que o espectador é livre para percorrer diferentes espaços onde situações simultâneas se sobrepõem. Os atores/performers transitavam entre os três ambientes construídos com estrutura de compensado, vigas de madeira e lona de plástico, onde imagens com documentos de arquivo eram projetadas. A apresentação musical ao vivo também tinha um destaque enorme, ativando formas de percepção multissensoriais e demandando do público outra espécie de atenção. Se alguém quisesse ver o que acontecia integralmente em cada espaço, era preciso assistir ao espetáculo pelo menos três vezes.
Foi com QUASEILHAS que Diego ganhou uma inserção nas artes visuais, que nas últimas décadas passou a acolher melhor produções híbridas das artes performáticas que encontram mais resistência no formato da caixa preta tradicional do teatro. E quem ajudou a abrir o caminho para o artista nessa área foi o britânico Isaac Julien, que assistiu ao seu espetáculo em Salvador e o convidou para criar uma performance coreográfica para a videoinstalação A Marvellous Entanglement (2019), sobre a arquiteta Lina Bo Bardi.
Desde então, os convites para mostrar seu trabalho fora do Brasil se tornaram frequentes. O mais recente é a participação no pavilhão de Gana, na Bienal de Veneza, onde apresenta a instalação Um Congresso do Sal (2022). Em 2020, pouco antes do início da pandemia, ele também fez uma residência na SAVY Contemporary, em Berlim, Alemanha, junto com a artista Laís Machado, sua companheira e com quem também atua em parceria na Plataforma ÀRÀKÁ. “Ainda acho que falta um entendimento maior nas artes visuais sobre as especificidades do trabalho dos artistas do corpo, que se dá a partir das relações e das trocas,” comenta Araúja. “Mas vejo uma boa abertura”.
O interesse pela escrita e pela linguagem é outra característica de sua trajetória. Esse era também um forte diferencial de QUASEILHAS, inteiramente cantada em oríkì’s – literatura oral de origem yorùbá, traduzida do texto de Diego escrito em português. Foi depois dessa experiência que ele começou a desenvolver o projeto Laboratório Internacional de Crioulo, em parceria com Laís Machado. Inspirado em outros projetos de artes performáticas em que uma linguagem é desenvolvida em grupo a partir de experimentos corporais, sua ideia era realizar uma série de encontros com pessoas de países afro-diaspóricos para criar uma língua “não nascida do trauma,” resultado da violência colonial. O corpo é a ferramenta principal na criação desse novo idioma, que se originaria a partir de ações performáticas. “Teria um tempo de investigação performática que depois poderia ser usado em produções artísticas, com a intenção de substituir o trauma pela poética”, explica.
Era o que Diego e Laís imaginavam começar a fazer a partir das conexões que surgiam com a residência na SAAVY, em fevereiro de 2020, onde apresentaram a fala Corpos que se expandem. Mas com o Covid-19, o mundo mudou radicalmente um mês depois, quando a ideia de expansão corporal deixou de fazer sentido por um bom tempo. “Houve uma contração em um momento que estávamos estabelecendo uma conexão muito forte com outros lugares e pessoas”, lembra o artista.
Por outro lado, foi nesse período de desconexão que Diego acabou descobrindo caminhos para explorar uma linguagem própria no espaço digital. É o caso do projeto Game Ensaio (2020), realizado para a exposição digital Os dias antes da quebra, curada por Diane Lima no programa Pivô Satélite. No formato de um jogo on-line e com a estética de um escape room – as chamadas “salas de fugas” usadas no mundo dos games para compartilhar pistas de determinados jogos –, o trabalho nos conduz por um percurso labiríntico, em que não vemos as opções de entrada e saída. Escolhemos um determinado tópico e só depois descobrimos do que se trata e em qual formato – se em áudios, vídeos ou textos escritos. A narrativa segue uma escrita ensaística, combinando referências teóricas com relatos de memória.
Para quem não assistiu outros trabalhos do artista presencialmente, como é o meu caso, Game Ensaio é um ótimo ponto de partida para visualizar o pensamento por trás de seus projetos em um formato mais cru, ao menos em relação à maneira como essas ideias ganham forma depois, misturadas a outras mídias. E a ideia de se estar em uma “sala de fuga” é uma ótima metáfora para o contexto pandêmico igualmente labiríntico no qual ainda seguimos, buscando novas linguagens como rotas de escape para seguir adiante.
Diego Araúja atua no campo da arte expandida e multidisciplinar como diretor, dramaturgo, roteirista e artista visual.
Nathalia Lavigne é pesquisadora, jornalista e curadora.