Conversa com

Raily Yance e o poder do objeto cotidiano

Com objetos locais e elementos do ambiente onde vive, o artista sintetiza contextos sociais e explora a relação entre objetos e ações na identidade coletiva. A obra de Raily estuda o poder de transformação social e espiritual desses objetos por meio dos ofícios e da mitologia caribenha.

C&AL: Em sua série Entropías de los cotidianos (2022), você tira vários objetos de seus respectivos contextos, fazendo com que os mesmos provoquem uma reflexão sobre a criação e a função das coisas. Com que tipo de objetos você gosta de trabalhar?

RY: Os objetos com os quais gosto de trabalhar são objetos que sintetizam um contexto, uma cultura, um grupo. No desenho do chinelo/patim, posso estudar o Caribe e a Holanda ao mesmo tempo. Para mim, os objetos determinam o que somos e não somos. Traduzem sociedades inteiras. Uma pessoa que acorda de manhã, ou a qualquer hora, começa a ser uma pessoa através de um conjunto de ações, e todas ou quase todas as ações estão relacionadas a um objeto. As ações são culturais, o que nos diferencia é o modo como tomamos café, ou a forma como colocamos o sapato, como utilizamos os cabos de eletricidade ou a forma de nossa colher, de nossa faca.

C&AL: A mitologia caribenha e o uso do corpo aparecem em seu trabalho elevando o objeto cotidiano a algo que consegue canalizar ou transmutar energias. Que memórias trazem os objetos mágicos e o imaginário espiritual da região?

RY: A utilização da história da arte como referência em minha obra é uma intenção consciente que vem de um gosto pessoal, é algo que me desafia, mas que também me dá razão de viver. Além de representar sociedades inteiras, os objetos tem historicamente o poder de servir como amuletos, de transformar situações, de conter coisas. Quando pequeno, sempre via os altares da minha avó, a reivindicação do objeto mágico cotidiano na religião Vodu e na Santería da Venezuela. Eu me lembro que minha avó manipulava o clima com duas colheres. Ela era a causadora de tudo, com aquela oração a Santo Isidoro. Então, para mim, o talismã, a varinha mágica, a espada e o manto sagrado têm um impacto. Por exemplo, por viver no Caribe Holandês, há anos não vejo uma auyama (abóbora) colocada em uma esquina, sem explicação. Em Maracaibo, ela é muito utilizada contra as más energias. Sempre há uma avó com uma auyama na esquina da casa.

C&AL: A ação e o tempo coexistem em seu universo através dos objetos. Como ler e entender a cultura que nos rodeia?

RY: No ano 2000, fiz um exercício de entendimento cultural. Comecei a observar que toda vez que alguém criava um produto cultural e queria torná-lo universal no Ocidente, baseava-se na mitologia grega. Por exemplo, o mangá e o anime a utilizam para ter um mercado no ocidente e, consequentemente, uma projeção histórica. É uma ferramenta que, de alguma forma, manipula algoritmos sociais, convenções e costumes. Então, disse a mim mesmo: “Vou explorar minha imagem a partir de uma lógica de fusão entre a mitologia grega e as minhas tarefas cotidianas em minha casa, em Maracaibo, no Caribe”. As coisas que faço para subsistir e as coisas que faço porque minha mãe me pede, ou favores que tenho de fazer para o vizinho, em outras palavras, apliquei ali toda a minha lógica de comunidade a fim de brincar com essa forma de ver, do ponto de vista do espectador. Raily cargando la caja de cerveza é uma das minhas obras favoritas entre tudo o que já fiz em meus anos de trabalho. Em primeiro lugar, há uma satisfação. Em segundo, foi provavelmente a série que me deu algum tipo de sucesso financeiro.

Depois, o que me preenche mais é trabalhar com o meu corpo. Quando você entrega sua imagem a outra pessoa, isso envolve muita vulnerabilidade. Eu diria que a magia da pintura em óleo me ajudou com o conflito que eu tinha com a minha imagem, a imagem racializada em uma cultura hispânica, a imagem do suspeito, a economia, a estética.

Raily Stiven Yance é um artista plástico formado em Artes Plásticas pela Universidade de Zulia, Venezuela. O artista tem desenvolvido sua prática desde 2010, participando de vários projetos individuais e coletivos na Venezuela e em outros países.

Sheila Ramirez (2000, Santiago de Cuba) é designer e pesquisadora cubano-angolana. Explora, através de arquivos visuais e sonoros, a relação afetiva entre as pessoas e os objetos ao seu redor. Atualmente, está materializando sua pesquisa através do projeto The Archive Room.

Tradução: Renata Ribeiro da Silva

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