Conversa com enorê

Artista do Brasil explora a linguagem criativa dos dados

enorê, cuja obra desafia a ideia da fluidez ao conectar a arte digital com a arte não-digital, conversa com a C&AL sobre as realidades visíveis e invisíveis.

C&AL: O que você pensa sobre os vieses inerentes incorporados às tecnologias, uma vez que elas são feitas por pessoas, e como seu uso pode reforçar as mesmas tendências? 

e: Quando se trata, por exemplo, de algoritmos instalados em plataformas de mídia social ou de aprendizagem automática, essas tendências se manifestam frequentemente de forma a afetar em maior grau as pessoas de identidades marginalizadas. Esses algoritmos não são neutros, uma vez que, como você mencionou, são feitos por pessoas tendenciosas a partir de bases de dados e de plataformas tendenciosas. O Instagram, por exemplo, é conhecido por reduzir o alcance e bloquear conteúdos que considera “inadequados” e, apesar da avaliação de conteúdos ser efetuada por algoritmos, ela muitas vezes afeta postagens ativistas que entende como ofensivas, o que às vezes acontece devido a palavras-chave ambíguas instaladas em sua base de dados. Uma leitura interessante sobre as conexões entre aprendizagem automática, visão computacional e racialização é o texto “As If” (Como se) de Ramon Amaro, disponível em inglês no e-flux.

C&AL: Você trabalha com mapeamento e escaneamento 3D, com imagens e texto. Há alguma limitação inerente à sua exploração da subjetividade, especialmente quando se trata de coisas invisíveis, como emoções, crenças, etc?

e: Realmente não acho que exista uma divisão clara de categorias entre o visível e o invisível quando se trata de emoções humanas ou de dados. Não acho que as emoções ou pensamentos sejam mais (in)visíveis que os dados – tudo isso é essencialmente informação. Só acaba sendo processada por sistemas diferentes, humanos ou digitais. Portanto, pode se tornar visível através desses processos, por exemplo, as emoções podem ser reveladas em expressões faciais ou colocadas em palavras ou escritos, e os dados digitais podem ser decodificados em uma tela.

C&AL: Que papel o corpo desempenha no espaço e como a tecnologia muda sua percepção?

e: Primeiro precisamos perguntar qual e de quem é o corpo – pois o corpo é variável no espaço. O espaço em si é uma definição vaga, uma vez que precisa do corpo de alguém para ativá-lo e dar contexto a ele. Como o espaço é construído a partir da forma como as pessoas se relacionam umas com as outras? Não há uma resposta única para essa questão, já que fatores como raça, deficiência, gênero, etc., entram em jogo quando as relações humanas se moldam. A tecnologia digital não cria necessariamente uma alternativa para o espaço físico e muitas relações presentes nos espaços físicos, boas ou ruins, acabam sendo reproduzidas nos espaços digitais. Ela é, no entanto, uma camada adicional através da qual essas relações e interações são processadas.

C&AL: Você criou para a C&AL uma obra que explora os temas luto e morte através da lente da mídia digital. Pode nos falar sobre ela? 

e: A obra foi inspirada por minha necessidade de entender o processo de luto relacionado a minhas experiências. Cresci com a forte presença da morte ao meu redor, uma vez que perdi meus pais muito cedo e eventualmente meus avós, que me criaram. Mais cedo este ano, percebi que nunca me concedi um espaço apropriado, ou sequer a permissão de estar de luto abertamente, enquanto ao mesmo tempo me perguntava se não estava simplesmente em um estado permanente de luto sem saber disso. Comecei a pensar nas formas que esse processo poderia assumir, pensando em membros da família, na história familiar que perdi e em como poderia recuperar minha parte perdida (ou finalmente aceitar sua perda). Posso não ser capaz de fazer isso facilmente pois minha família não deixou registros escritos, o que é infelizmente muito comum em famílias negras no Brasil. Mas, e se eu conseguisse construir um mundo através do qual essa busca pudesse ser efetuada? Um mundo onde a história não fosse linear nem definitiva? Essas questões me levaram a desenvolver esta obra utilizando romances visuais, um gênero de videogames, como inspiração.

Acesse aqui a obra holding death close (mantendo a morte perto), criada por enorê, especialmente para a C&AL.

enorê é artista multimídia do Brasil, atualmente vivendo em Londres.

Entrevista: Angela Muritu and Theresa Sigmund

Tradução: Renata Ribeiro da Silva

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