Sob a curadoria de Sandra Benites, Keyna Eleison, Flávya Mutran e Vânia Leal, a exposição colocou em destaque os artistas amazônicos no contexto da produção artística que discute questões sociais, ambientais e culturais, promovendo uma reflexão sobre a complexa realidade amazônica em relação a temas identitários e éticos. Este artigo explora os principais temas apresentados durante a exposição.
Acervo 1ª Bienal das Amazônias. Assistente de Produção: Nayane Menezes. Foto: Chico Atanásio e Lucas Santana/Rede Moinho.
De agosto a novembro de 2023, a capital do estado do Pará, Belém, recebeu a 1ª edição da Bienal das Amazônias, que contou com curadoria de Sandra Benites, Keyna Eleison, Flávya Mutran e Vânia Leal. A exposição reuniu a produção artística contemporânea de 120 artistas oriundos de países da Pan-Amazônia e dos sete estados da Amazônia brasileira. Entre os artistas, estão aqueles que vivem ou nasceram nos estados da Amazônia legal ou que possuem alguma relação íntima com este território, mesmo sendo naturais ou residentes de outros estados.
Bubuia: águas como fonte de imaginações e desejos foi o título-tema da Bienal e faz referência ao trabalho do escritor, professor e poeta João de Jesus Paes Loureiro. Aqui o conceito de “dibubuísmo” amazônico define a relação íntima do caboclo ribeirinho e da população nativa das zonas fluviais da região com o próprio rio. Assim, as atividades da Bienal convidavam o público a refletir sobre as relações entre as águas, tidas como fontes de imaginações e desejos, e os habitantes do território da floresta, estimulando a criação e a imaginação de realidades paralelas à nossa realidade tangível.
A relação entre artistas amazônicos, meio ambiente e realidade digital pôde ser vista na instalação Mangueira desejo (2023), um site specific produzido por Val Sampaio em parceria com o grupo de pesquisa em poéticas artísticas Lab Techné. A obra trata de uma bonsai mangueira coquinho de nove anos, apresentada como uma árvore que nutre uma máquina de desejos, funcionando como uma usina de desejos por meio de um ambiente de interação digital e de realidade aumentada. A gênese da obra implica a passagem do tempo e do avanço criativo sobre organismos e ambientes, e convida o público a declarar seus desejos para aquele bonsai mangueira coquinho que participa da exposição. Através das ferramentas de realidade aumentada era possível acessar a plataforma do projeto e interagir com a obra por meio de um filtro no Instagram, onde os desejos podiam ser escritos em folhas virtuais que alimentam a nuvem de desejos ao redor da árvore.
A 1ª edição da Bienal das Amazônias também prestou homenagem à fotógrafa Elza Lima, reunindo suas obras sob o tema Múltipla precisão de olhar. Com mais de quatro décadas de experiência, a artista foca, em suas obras, em cenas cotidianas da realidade amazônica. São imagens que evocam memórias, sensações e afetos entre seres humanos e a natureza. Os retratos de Elza Lima capturam e refletem olhares profundos da vivência única do ribeirinho, do caboclo e da criança com as águas dos rios ou mesmo no meio da mata, lugares de conforto e aconchego.
A artista visual Rafa Bqueer, em sua obra Oyá – Imagens da Revolta (O cabano paraense) 2023, reivindica uma memória preta-afro-amazônica presente na história da Cabanagem, revolta popular ocorrida alguns anos depois da adesão do Pará à independência do Brasil. “Se nós, artistas contemporâneas, pretas, indígenas, somos as descendentes das que lutaram pela liberdade na Cabanagem, nada mais justo que nós possamos trazer o nosso lugar de fala ancestral”, enfatiza a artista. “Para criar imagens que questionem as representações feitas por artistas brancos modernistas”, a performance, orientada para fotografia, propõe um monumento vivo onde uma figura empunha um terçado, símbolo de Oyá, uma divindade da religião iorubá e da cultura afro-amazônica, desafiando a arquitetura modernista de Oscar Niemeyer na entrada da cidade. A obra esteve exposta no andar térreo da Bienal das Amazônias.
Entre trocas e partilhas, os artistas dialogaram com os temas que permeiam a realidade amazônica e que têm uma relação de proximidade com o cotidiano ribeirinho. A instalação O Mundo do fundo de Jamaci (2017) é um mapa das memórias do riacho Igarapé Jamaci, produzido com as famílias de uma comunidade na ilha da região insular de Belém. A artista canadense radicada no Brasil, Véronique Isabelle, e a fotógrafa paraense Débora Flor conviveram com os moradores da região e, a partir de trocas simbólicas estabelecidas, percorreram por alguns anos as águas do rio Jamaci. O olhar do tralhoto (2023) é uma instalação fotográfica de Débora Flor na qual a artista afirma “somos todos as águas que formam este grande rio”. Já Canoa Cobra (2016-2023) é uma canoa construída por Véronique Isabelle e Éder Ribeiro, posteriormente modificada em 2019 por Véronique com a assistência do Mestre João.
Neste vasto panorama da arte contemporânea amazônica, a 1ª Bienal das Amazônias surgiu como um respiro que descentraliza a produção contemporânea em artes visuais no Brasil. Teve também um olhar atento para a emergente produção artística dos povos do Norte do Brasil, ao convocar artistas que assumem este protagonismo enquanto povos da região amazônica. Contribuiu para que artistas amazônicos falem por si, para os seus e para o mundo.
Cinthya Marques do Nascimento é fotógrafa, artista e pesquisadora. Professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, UNIFESSPA. Atualmente desenvolve pesquisa de Doutorado sobre a representatividade da Amazônia na Arte Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.