Nesta conversa, Raphael Fonseca e Yina Jiménez Suriel apresentam o estalo como referente conceptual da Bienal, que relaciona o som com o espaço, corpos e práticas culturais históricas. A curadoria também destaca a colaboração como prática central, envolvendo múltiplas vozes e geografias.
Wiki Pirela (Venezuela, 1992), “El cascarón” (A Casca), instalação, técnica mista e dimensões variáveis, 2023. Galeria Patricia Ready, Santiago, Chile.
C& América Latina: Vocês poderiam contar um pouco sobre o conceito da 14ª Bienal do Mercosul a partir do título Estalo?
Raphael Fonseca: Estalo é o pontapé conceitual da 14ª Bienal do Mercosul. Acho que os títulos são interessantes na medida em que são polissêmicos. Estalo aponta como a pandemia de Covid-19 fez nossas vidas mudarem num estalar de dedos e, como a imagem do “estalo”, embora muito efêmera, envolve a relação entre som, espaço e o corpo – não só o humano –, e também, como o “estalo” é um marcador de ritmo em sua relação com práticas históricas como a do samba, do jazz e das religiões afro-brasileiras.
Yina Jiménez Suriel: Um aspecto sobre o “estalo” é que registra algo que já aconteceu ou é o detonador de algo que pode acontecer no presente. Esse jogo, portanto, implica uma construção temporal, que não é autônoma e não existe a partir do singular, mas é tempo em relação.
Tirzo Martha (Curaçao, 1965), "untitled" (sem título), instalação, técnica mista e dimensões variáveis, 2022. Cortesia do artista.
C&AL: Vocês têm trabalhado na realização da Bienal há algum tempo. Poderiam falar um pouco sobre o papel que a colaboração desempenha na sua prática curatorial?
RF: Ao lidar com imagens, você está sempre trabalhando com outras autorias, para além do próprio olhar. Após dois anos de trabalho, o melhor termo para designarmos a relação dentro desse time de curadoria e com toda a equipe da Fundação Bienal do Mercosul é “família”. Todo ato dentro da 14ª Bienal é, em diferentes graus, um ato coletivo, as coisas caminham em conjunto. E, quando dissonam, sempre geram resultados inesperados, o que é muito saudável.
YJS: Gosto de pensar que a colaboração está no epicentro da toda prática curatorial. Eu a entendo em sua relação com as formas de vida, entidades, subjetividades e contextos com os quais interajo para a geração de pensamento ou materialização de ideias. Nesse sentido, também penso a colaboração como uma forma de praticar amor de alguma maneira, porque nos nutrimos mutuamente, e isso implica que seu rastro pode existir e nos acompanhar pelo resto de nossas vidas.
C&AL: Raphael, o que torna a curadoria da 14ª Bienal do Mercosul semelhante ou distinta de outros projetos de grande escala que você organizou?
RF: Eu fiz a 1ª Bienal do Barro do Brasil (2014), de caráter experimental, e a 22ª Bienal Sesc_Videobrasil (2023), com 40 anos de trajetória. Construída a partir de um bloco econômico, a Bienal do Mercosul tem o peso da tradição: desde 1997 foram 13 edições. Como fazer uma Bienal que entende a sua trajetória identitária e geográfica, mas, ao mesmo tempo, lança outras linhas? Estalo respeita a história latino-americana do evento e também amplia as vozes de nosso coro, criando conexões com outras geografias, além de contar com a presença de artistas de vários lugares do Brasil.
Ali Eyal (Iraque, 1994), “The blue ink pocket, and” (O bolso de tinta azul, e), óleo sobre tela, guarda-roupa, algodão cru, arroz, tapete tecido, lápis conté, dimensões variáveis, 2022. Brief Histories, Nova York.
C&AL: Yina, nós nos conhecemos no C& Critical Writing Workshop em Dallas, EUA, onde conversamos sobre sistemas de conhecimento e criação de espaços pela linguagem. Quais estratégias podemos esperar em Estalo para expandir a criação de significados?
YJS: Uma estratégia que podemos esperar é que a noção de “estalo” não está sendo colocada de maneira apenas discursiva, mas é uma parte intrínseca da operacionalidade desta Bienal. “Estalo” como estratégia tem repercussões na forma como a Bienal irá se entrosar com a cidade de Porto Alegre e o estado do Rio Grande do Sul, não apenas em termos de infraestrutura e dispositivos territoriais, mas também no modo de interagir com aqueles que constituem a cidade e o estado. Isso começa pela composição da equipe curatorial e pela participação de uma gama diversificada de agentes culturais com papel ativo na mediação das práticas artísticas — todas as fichas de trabalho ampliadas são escritas por historiadores, pesquisadores e escritores da cidade e/ou do estado —, na concepção e definição do programa educacional e dos programas públicos, nas instituições com as quais estamos colaborando, na elaboração das diferentes publicações editoriais, bem como no acesso e na discussão das mesmas. É a primeira vez que os locais de exposição da Bienal saem do centro de Porto Alegre.
C&AL: Como vocês têm trabalhado com a Fundação Bienal do Mercosul para contextualizar a nova realidade da 14ª edição, imposta pelas enchentes de maio de 2024?
RF: Quando as enchentes de maio ocorreram, a organização da 14ª Bienal do Mercosul estava bastante avançada, pois a Bienal seria inaugurada em setembro, então foi preciso suspender nosso trabalho de produção. Várias pessoas da equipe vivem em Porto Alegre e presenciaram a tragédia. As enchentes nos levaram a uma revisão da própria noção de “estalo”. “Estalo” não se refere apenas à potência da vida, mas também à lembrança da morte, da instabilidade dos ecossistemas do mundo e dos muitos perigos que correm. Antes das enchentes, já contávamos com trabalhos que traziam um certo pessimismo e melancolia. Após o ocorrido, talvez esse tom tenha se elevado no contexto geral da Bienal.
Vitória Cribb (Brasil, 1996), “_ENXERGA”, 2021, NFT. Cortesia da artista.
C&AL: Há um plano para abordar ou lembrar de alguma forma o que aconteceu?
RF: Como disse em outras entrevistas, é inegável que a nossa Bienal seja enxergada como a “Bienal da enchente”. De todo modo, sou particularmente contra uma estetização da tragédia e da miséria alheias. Acho muito cômodo vários artistas contemporâneos em lugares muito privilegiados e de poder colecionarem obras que se apropriam da dor, da perda e da tragédia em diferentes pontos do globo. Nesse sentido, não acho que a nossa Bienal será um evento ilustrativo dessas tragédias e de outras tragédias no mundo. Por outro lado, muitas das obras mostradas em Porto Alegre são lembranças – umas mais sutis, outras mais contundentes – da instabilidade que o mundo vive desde que existe.
Muitas vezes sinto que alguns curadores e artistas buscam respostas rápidas no campo da criação artística para acontecimentos como esse. Eu, infelizmente, sou mais favorável a uma digestão e reflexão mais longas para evitar apropriações que apenas perpetuam diferentes formas de violência.
Que sejam estalos de esperança e de desejo de mudança. Que a nossa Bienal possa tanto fazer com que as pessoas reflitam indiretamente sobre o ocorrido, quanto ser um evento que traga outros tópicos e discussões para uma população que, em certa medida, também precisa estar diante de imagens e narrativas que a tirem da eterna lembrança da tragédia.
Berenice Olmedo (México, 1987), "ThermoLyn orthoprosthetic, suction valve for prosthesis, osteosynthesis plates for fractures and lead" (ThermoLyn ortoprotético, válvula de sucção para prótese, placas de osteossíntese para fraturas e chumbo), 2024. Cortesia da artista. Foto: Alum Gálvez.
Este texto faz parte de uma colaboração editorial entre salta art e C&AL.
A entrevista foi realizada em duas partes, antes e depois das trágicas enchentes em maio de 2024 na cidade de Porto Alegre, no Brasil, sede da Bienal do Mercosul, que ocorrerá entre 27 de março e 1 de junho de 2025.
Raphael Fonseca é curador-chefe da 14ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, e curador de Arte Moderna e Contemporânea da América Latina no Denver Art Museum.
Yina Jiménez Suriel é curadora adjunta da 14ª Bienal do Mercosul e curadora da The Current IV da TBA21-Academy. Ela é editora associada da Contemporary And Latin America (C&AL).
Michaela Blanc é wikimedista residente no Pérez Art Museum Miami. Participou da C& Critical Writing Workshop em Dallas.