Jota Mombaça acompanhou em Atenas os diversos eventos que circundaram a programação da documenta 14. Um deles foi a exposição conduzida pela iniciativa “Artistas em risco”.
Pela janela do Barco da História. Parlamento dos corpos, documenta 14. Foto: Nikos Doulos, cortesia do autor*.
Erkan Özgen, Wonderland (País das maravilhas), 4 min, 2016. Captura de tela.
A primeira cena desta reflexão se inicia num barco. Não falo do já tão representado barco da chamada crise dos refugiados na Europa, mas de um outro, intitulado O Barco da História. Ele é parte do programa público da documenta 14. Anna Papaeti fala sobre música, tortura e exercícios de poderio militar dentro dos campos de concentração gregos; mais tarde uma palestra enfoca o dilema crucial de como certas histórias de sofrimento e resiliência permanecem sem serem contadas. E bem ali, em algum lugar do Mar Mediterrâneo, dentro da institucionalidade flutuante do Barco da documenta, a seguinte questão veio à tona: como levar em conta as histórias não contadas pelos dispositivos históricos de poder?; como escutar as vozes colocadas abaixo da audição dos investimentos históricos? As respostas para essas perguntas dependem de um movimento rumo aos limites da historicidade, a saber: os limites da escrita da História. Um movimento que abarque outras formas de narrativas, inventários e processos políticos enquanto cria fissuras nas versões hegemônicas de poder, vida, liberdade e violência.
Escrevo este artigo aqui de Atenas, cidade na qual vim morar porque faço parte de uma residência com duração de um ano que começou com o projeto da documenta “Aprender de Atenas” e que irá continuar na cidade como consequência da presença institucional desse megaevento e de suas intervenções nos ritmos do fazer cultural local. Então, é precisamente esse contexto que quero confrontar com as questões apontadas anteriormente, abrindo o espaço deste texto para uma elaboração dos e nos limites das narrativas e inventários, enquanto me perco nos arredores da documenta 14. Por “arredores” quero dizer os movimentos artísticos e políticos que estão emergindo na cidade e passando por ela com, para, por causa e contra a “intromissão” desse investimento global de poder.
A última cena desta reflexão começa, então, no local do AR Pavilion. Artists at Risk (AR, ou Artistas em risco) é uma plataforma “na intersecção entre direitos humanos e arte” que oferece auxílio político para artistas em perigo em seus países de origem devido a perseguição política. O projeto fornece assistência com assuntos relacionados à obtenção de visto e vários outros procedimentos, além de oferecer o espaço da Safe Haven Residencies (Residências Porto Seguro) por toda a Europa para investigação artística de tópicos conectados com as tensões geopolíticas e das políticas do corpo ao redor do globo. Com curadoria de Marita Muukkonen e Ivor Stodolsky, o AR Pavilion – um pequeno espaço localizado próximo à praça Omonia no centro de Atenas – é uma exposição que contém os trabalhos de Pinar Öğrenci, Erkan Özgen e Issa Touma. Foi aberta na mesma semana da documenta em Atenas como um dos vários eventos paralelos acontecendo na cidade.
Minha intenção aqui não é a de opor a iniciativa do AR com o gigantesco investimento da documenta na cidade de Atenas, nem afirmá-lo como uma alternativa simétrica a esse megaevento. Creio que o AR Pavilion existe por si mesmo e merece ser considerado em suas dimensões e posição próprias. Todavia o objetivo deste texto é o de buscar as questões que surgiram n’O Barco da História e, por essa razão, a exposição organizada pelo Artists at Risk aparece como uma estrutura possível para se discutir os limites dos inventários e da narrativa em relatos contemporâneos de violência, sofrimento e da história da necropolítica. No que tange a esse alvo conceitual há pelo menos duas obras no AR Pavilion que gostaria de tratar como ferramentas de reflexão desses limites.
A primeira delas é Wonderland (País das maravilhas, 2016), de Erkan Özgen, um curta-metragem que traz uma criança surda de 13 anos chamada Muhammed falando sobre as cenas necropolíticas da guerra civil na Síria que ele presenciou em Kobanî, a pequena vila no norte do país onde ele vivia com sua família. Sem a faculdade da escuta ou da fala, o relato que Muhammed faz dos horrores que ele testemunhou rompe a política da voz que define o regime histórico dominante. Como nesse caso a história de violência é contada por meio de uma linguagem performática que traz a totalidade do corpo da criança para essa cena de escrita histórica, a obra vai até o limite mesmo da expressividade de forma a reconhecer a mediação de Muhammed da história como um procedimento de inventariação que desafia radicalmente a própria noção de inventário.
A segunda obra é 9 days from my window in Aleppo (Nove dias da minha janela em Aleppo, 2012), de Issa Touma. Uma das primeiras frases ditas pela voz de Touma no filme é: “Hoje é o primeiro dia da guerra na minha rua”. Então do dia um ao dia nove, munido de sua câmera, o artista testemunha os eventos de uma guerra vista da sua janela, registrando o movimento das forças armadas de resistência, os processos de construção e desconstrução de um posto de controle improvisado, o deslocamento de alguns vizinhos em fuga, a permanência resiliente de outros… O filme se apresenta como uma afirmação bastante literal e crua de como a guerra inscreve sua violência na vida diária de certa comunidade ou um grupo de pessoas, mas ao mesmo tempo incorpora seus próprios limites, como está ilustrado em uma das últimas frases ditas por Touma: “Isso vai continuar por um longo tempo”. E depois: “Não quero filmar a guerra por nem mais um minuto”.
By loading the video, you agree to YouTube’s privacy policy.Learn more
Load video
Always unblock YouTube
Issa Touma – 9 Days from My Window in Aleppo (Nove dias da minha janela em Aleppo). Produção: Paradox
A recusa de Issa Touma em “não filmar a guerra por nem mais um minuto” encontra, através da articulação curatorial da exposição, o reencenamento parcial de Muhammed sobre suas memórias da violência, criando, assim, um espaço compartilhado de opacidade no qual a escrita da história torna-se algo imediatamente implicado nas suas próprias sombras; um tipo de movimento roto que consiste na criação de fendas por onde é possível proliferar relatos não hegemônicos da História. Dessa forma o AR Pavilion insinua uma das muitas respostas factíveis às questões emergentes do Barco da História da documenta, apesar de não oferecer a promessa de uma históricidade que tudo abarca: para se juntar a esse arriscado movimento é crucial pular do barco da história e nadar no mar das narrativas que correm em seus arredores.
* Essa foto foi tirada durante uma das apresentações, quando Nelli Kambouri falava sobre as relações entre os contêineres do porto de Piraeus e a reorganização de projetos neoliberais no capitalismo global.
Jota Mombaça é uma bicha não binária, nascida e criada no Nordeste do Brasil, que escreve, performa e faz estudos acadêmicos em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, anticolonialidade, redistribuição da violência, ficção visionária, fim do mundo e tensões envolvendo ética, estética, arte e política na produção de conhecimento do Sul-do-Sul global. Seus trabalhos atuais são a colaboração com a Oficina de Imaginação Política (São Paulo) e a residência artística com o CAPACETE 2017 na documenta (Atenas/Kassel).
Tradução do inglês por Heitor Augusto.