A primeira cena desta reflexão se inicia num barco. Não falo do já tão representado barco da chamada crise dos refugiados na Europa, mas de um outro, intitulado O Barco da História. Ele é parte do programa público da documenta 14. Anna Papaeti fala sobre música, tortura e exercícios de poderio militar dentro dos campos de concentração gregos; mais tarde uma palestra enfoca o dilema crucial de como certas histórias de sofrimento e resiliência permanecem sem serem contadas. E bem ali, em algum lugar do Mar Mediterrâneo, dentro da institucionalidade flutuante do Barco da documenta, a seguinte questão veio à tona: como levar em conta as histórias não contadas pelos dispositivos históricos de poder?; como escutar as vozes colocadas abaixo da audição dos investimentos históricos? As respostas para essas perguntas dependem de um movimento rumo aos limites da historicidade, a saber: os limites da escrita da História. Um movimento que abarque outras formas de narrativas, inventários e processos políticos enquanto cria fissuras nas versões hegemônicas de poder, vida, liberdade e violência.
Escrevo este artigo aqui de Atenas, cidade na qual vim morar porque faço parte de uma residência com duração de um ano que começou com o projeto da documenta “Aprender de Atenas” e que irá continuar na cidade como consequência da presença institucional desse megaevento e de suas intervenções nos ritmos do fazer cultural local. Então, é precisamente esse contexto que quero confrontar com as questões apontadas anteriormente, abrindo o espaço deste texto para uma elaboração dos e nos limites das narrativas e inventários, enquanto me perco nos arredores da documenta 14. Por “arredores” quero dizer os movimentos artísticos e políticos que estão emergindo na cidade e passando por ela com, para, por causa e contra a “intromissão” desse investimento global de poder.
A última cena desta reflexão começa, então, no local do AR Pavilion. Artists at Risk (AR, ou Artistas em risco) é uma plataforma “na intersecção entre direitos humanos e arte” que oferece auxílio político para artistas em perigo em seus países de origem devido a perseguição política. O projeto fornece assistência com assuntos relacionados à obtenção de visto e vários outros procedimentos, além de oferecer o espaço da Safe Haven Residencies (Residências Porto Seguro) por toda a Europa para investigação artística de tópicos conectados com as tensões geopolíticas e das políticas do corpo ao redor do globo. Com curadoria de Marita Muukkonen e Ivor Stodolsky, o AR Pavilion – um pequeno espaço localizado próximo à praça Omonia no centro de Atenas – é uma exposição que contém os trabalhos de Pinar Öğrenci, Erkan Özgen e Issa Touma. Foi aberta na mesma semana da documenta em Atenas como um dos vários eventos paralelos acontecendo na cidade.
Minha intenção aqui não é a de opor a iniciativa do AR com o gigantesco investimento da documenta na cidade de Atenas, nem afirmá-lo como uma alternativa simétrica a esse megaevento. Creio que o AR Pavilion existe por si mesmo e merece ser considerado em suas dimensões e posição próprias. Todavia o objetivo deste texto é o de buscar as questões que surgiram n’O Barco da História e, por essa razão, a exposição organizada pelo Artists at Risk aparece como uma estrutura possível para se discutir os limites dos inventários e da narrativa em relatos contemporâneos de violência, sofrimento e da história da necropolítica. No que tange a esse alvo conceitual há pelo menos duas obras no AR Pavilion que gostaria de tratar como ferramentas de reflexão desses limites.