C&: Observando mais de perto os fundamentos desse conceito, a quais movimentos e pensadores ele remonta? Qual é o ponto de origem, especialmente se contextualizado em África e suas diásporas?
WM: Obrigado pela pergunta, pois ela me permite reforçar o que disse há pouco. Não se deve procurar na Europa pelo alicerce histórico do conceito. Verifica-se um uso abundante do termo “descolonização” após a Segunda Guerra Mundial, com o processo de descolonização da Ásia e África. Contudo, o ponto de virada institucional para mim foi a Conferência de Bandung em 1955. Um evento que, deixemos claro, foi organizado pelo Estado e voltado para ele. Mas a mensagem era inconfundível: nem capitalismo, nem comunismo, mas sim a descolonização. E a primeira frase do discurso inaugural de Sukarno foi mais ou menos “esta é a primeira vez na história da humanidade que acontece uma conferência internacional de pessoas de cor”. Como é sabido, 29 Estados asiáticos e africanos participaram, incluindo a China de Mao, que certamente estava numa situação desconfortável. “Pessoas de cor” também significava pessoas pertencentes a religiões não-cristãs. Estados de maioria muçulmana ou com uma larga população muçulmana tiveram uma participação significativa na conferência. Contudo, esses princípios foram de alguma forma desvirtuados quando Bandung se transformou em “países não-alinhados”, cuja primeira reunião aconteceu em Belgrado em 1961, sob o mando do marechal Tito.
Veja, desde Bandung e a luta pela descolonização na Ásia e na África, durante a Guerra Fria e as obras de Aimé Césaire e Frantz Fanon em especial, o conceito de “descolonização” tornou-se corrente e hoje é aplicado em diferentes projetos que vão da descolonização da religião e do gênero/sexualidade à descolonização do Estado e da economia, da estética e do saber, do conhecimento e da subjetividade, da Academia, da universidade etc.
C&: Nesse sentido, como você definiria os legados deixados por Fanon para a análise da “colonialidade do poder” como um ponto de referência?
WM: O legado de Fanon para a “decolonialidade” como um todo tem sido crucial. No contexto mais específico do nosso projeto, a obra de Nelson Maldonado-Torres, que trabalha na intersecção dos legados fanonianos e do projeto decolonial do coletivo que mencionei anteriormente já fez duas ações cruciais: o primeiro é a anatomia da “colonialidade do ser”; o outro é deslocar-se da intervenção de Lévinas na filosofia continental, que parte de seus conhecimentos e experiências enquanto judeu, rumo a Dussel – argentino de ascendência alemã e fundador da filosofia da liberação, campo no qual confronta Lévinas baseando-se nas histórias locais e coloniais das Américas – e, finalmente, a Fanon. Isso não significa que nós, do coletivo, somos os donos de Fanon. Há muitos outros que se apropriam dos legados decoloniais de Fanon, e todos são bem-vindos. Destacaria, contudo, o projeto da Associação Filosófica Caribenha, fundada pelo filósofo jamaicano Lewis Gordon. Faço essa menção porque tem havido desde sua gestação um diálogo frutífero, pleno e de celebração entre modernidade/colonialidade e a associação filosófica. Compartilhamos as experiências vividas (sim, sei que experiências são “construídas”, o que não significa que não sejam “experiências vividas”) do Sul continental, da América Central e do Caribe. Os pilares dessas experiências diferem, ao mesmo tempo que se complementam. Para os afro-caribenhos, os pilares são as histórias da chamada “passagem do meio”; para nós eles estão na modernidade/colonialidade coletiva, nas histórias dos nossos antepassados europeus (espanhóis, portugueses, holandeses, franceses, britânicos, alemães) que invadiram, se apropriaram e expropriaram a terra, como se estivessem em casa, desconsiderando a população nativa e as grandes civilizações do “Novo Mundo”. E cometeram um dos maiores crimes contra a humanidade ao caçar e escravizar as populações africanas.
C&: Você poderia esclarecer o termo “desconexão” que você cunhou?
WM: Primeiramente, não fui quem cunhou “desconexão”. Foi o filósofo egípcio marxista Samir Amin, que introduziu o termo num livro publicado em 1982 em Paris. O título era La déconnexion, traduzido para o inglês como “delinking”. A proposição de Amin era desconectar-se do capitalismo, quer dizer, defendia uma desconexão econômica.
O que fiz foi reempregar o termo ao falar de “desconexão da matriz colonial de poder”, mais ampla do que desconexão do capitalismo. Desconectar-se não rumo ao socialismo, mas à transmodernidade e pluriversatilidade, onde não há espaço para a ideia abstrata de universal. Então o socialismo é uma opção, como muitas outras em busca de se desconectar do estado de espírito em que estamos hoje. Mas não pode ser “a” opção, a única forma de desconexão. No processo de organização e desconexão das duas opções resultantes do Iluminismo europeu – o (neo)liberalismo e o (neo)socialismo – cheguei a uma compreensão da ordem mundial atualmente nos termos de reocidentalização, desocidentalização e decolonialidade.
C&: À luz da decolonialidade, até que ponto eventos em forma de bienal trazem em si uma estrutura que, em geral, está impregnada pelas bases dos sistemas hegemônicos de conhecimento, por exemplo, ao criar algumas formas de exclusão em questões como gênero, fronteiras e migração? Nesse contexto como você avalia a Dak’Art, a bienal de Dakar que foca em artistas ou produções do continente africano – incluindo tanto o norte quanto países subsarianos e as diásporas?
WM: Há duas direções, ou opções, nas quais a desconexão (ou détournement) está operando na esfera da arte, museus, bienais ou trienais. A questão consiste em “ler” o projeto que impulsiona e motiva os eventos ou a apresentação dos arquivos (por exemplo, museus). Uma é a desocidentalização. Já escrevi alguns artigos a respeito, a propósito da Sharjah Biennial 11, sobre o Museu de Arte Islâmica, em Doha, e o Museu das Civilizações Asiáticas, em Singapura.
Já a Dak’Art é para mim mais difícil fazer a leitura. Por um lado ela começou claramente inserida na filosofia e na sensibilidade dos variados processos de descolonização africana. Me parece que a Dak’Art está na metade do caminho entre os legados da modernidade europeia e a história da descolonização na África. O que torna radical a desocidentalização, por exemplo, da Sharjah Biennial é o fato de ela ser mantida pelo capital financeiro. Aí mora a situação paradoxal que torna difícil compreender a desocidentalização “cultural”: é “graças” a um impressionante crescimento econômico que se torna possível a desocidentalização cultural. E é a falta de uma sólida autonomia financeira que faz a Dak’Art navegar entre os legados da modernidade europeia e o desejo pela descolonização. Dak’Art pode trazer o Terceiro Mundo e a Europa para o ex-Terceiro Mundo. Vejo esse evento como um espaço para promover e alavancar o pan-africanismo no campo da arte. E o pan-africanismo pode ser decolonial, mas não o é necessariamente.
A Dak’Art poderia operar paralelamente às bienais de Sharjah, que é uma instituição que não apenas promove e apoia artistas africanos, mas organiza um claro e radical projeto de reemergência. Ou seja, que reinscreve na esfera cultural o espírito de Bandung e da descolonização africana segundo o pensamento de Amilcar Cabral, Frantz Fanon, Steve Biko e Walter Rodney, se quisermos trazer a diáspora africana para a análise.