Com sua atual exposição parte de The Milk of Dreams, na Bienal de Veneza, e uma retrospectiva recentemente encerrada no Museu Reina Sofia, em Madri, foi novamente despertado o interesse pela obra de Belkis Ayón. Mas quem compõe a sociedade secreta Abakuá, um tema central na obra da artista, e como sua história e a tradição afro-diaspórica influenciaram Ayón? O que significa para a Abakuá alcançar visibilidade global, por meio de uma pessoa que foi proibida de participar de seus rituais por ser mulher?
Belkis Ayón (1967-1999), vista da exposição na 59ª Bienal de Veneza, Perfidia, colografia sobre papel, 1998. Foto: C& América Latina. Cortesia: The Belkis Ayón Estate.
Olhos esculpidos em branco cor-de-giz iluminam quadros da cor de uma obsidiana, enquanto uma série de figuras fantasmagóricas converte espectadores em observados – ambos mirando em silêncio. Olho para o muro da galeria, leio a palavra “Abakuá” e sou imediatamente transportada para a Casa da África na Havana Velha, em Cuba, onde ouvi falar pela primeira vez a respeito dessa sociedade secreta e sua conexão com minha terra natal, Camarões. Pesquisando as obras cenográficas de grande formato, muitas vezes sem molduras e com recortes simétricos, ou montadas em plataformas inclinadas, testemunhei um convite coletivo para contemplar nossa própria ascensão a planos alternativos. A obra da artista cubana Belkin Ayón (1967-1999) é um exercício de criação de mitos e sincretismo, um espaço para decodificar cronologias e metáforas da (re)imaginação africana na Diáspora. De diversas formas, as culturas cubana e afro-diaspórica são, em geral, personificações vivas da prática sincrética: o amálgama de diferentes culturas, religiões e escolas de pensamento para codificar novos sistemas. Em sua abrupta, embora prolífica carreira, Ayón ofereceu um extenso contrarretrato da vida e da vida após a morte de Sikán, uma mulher sacrificada na lenda de Abakuá: uma sociedade secreta só de homens que prendeu a imaginação da artista. Usando marcas alegóricas e a iconografia religiosa, Ayón comenta sobre contextos sociais, humanos e materiais, enquanto exibe sua maestria na trabalhosa técnica de gravura conhecida como colografia.
O épico de Abakuá estende-se para além das geografias de Cuba, tendo sua origem nas regiões onde ficam hoje o Sudoeste de Camarões e os estados do Rio Cross, na Nigéria. Essas raízes/rotas são fundamentais na leitura cautelosa das obras de Ayón, a fim de evitar apagar as histórias incorporadas em sua linguagem visual. Abakuá é uma das muitas práticas espirituais africanas transportadas nas mentes e nos corpos de pessoas escravizadas para as Américas. Como o candomblé no Brasil, o vodu no Haiti ou a santeria, essas práticas foram preservadas e codificadas em cantos, dança e cultura imaterial. Elas são formas de resistência à tentativa de desumanização pela escravidão. Abakuá caracteriza-se como uma fraternidade exclusiva e altamente organizada, não religiosa, embora alguns de seus critérios rígidos tenham se dissolvido nos últimos anos. É baseada em princípios de ajuda mútua, disciplina e governança, com apenas alguns homens tendo acesso ao funcionamento interno da instituição.
Belkis Ayón (1967-1999), vista da exposição na 59ª Bienal de Veneza, Sem título (Sikán com cabra), colografia em papel, 1993. Foto: C& América Latina. Cortesia: The Belkis Ayón Estate.
Ayón ofereceu um extenso contrarretrato da vida e da vida após a morte de Sikán, uma mulher sacrificada na lenda de Abakuá.
O nome Abakuá é uma creolização de “Abakpa”, região do Sudeste da Nigéria, onde a sociedade se mantinha ativa. É a região do porto de escravizados e antigo Reino de Calabar (Akwa Akpa), referido em Cuba como Carabalí. Na Nigéria e em Camarões, Abakuá é conhecida como Sociedade Ékpè (que significa leopardo). Desde que chegou a Cuba no início dos anos 1800, a sociedade permanece ativa e conta ainda hoje com mais de 20 mil membros distribuídos por Havana, Matanzas e Cardenas, que mantêm sua própria língua e suas leis. Os moninas (iniciados) pertencem a linhagens com tratados (mitos de origem ou tratados) ligados a seus equivalentes africanos: Efik Ebuton (povo Èfìk), Eforisún Efó (povo Efut) & Orú Ápapa (povo Úrúrán ou Oron). O sincretismo linguístico ou a creolização tornaram-se necessários para a codificação e a preservação da tradição oral africana dentro da colônia espanhola. O Dia de Tres Reyes (Dia dos três reis), a primeira celebração que permitiu aos afrodescendentes expor publicamente sua cultura, tornou-se a referência onde a tradição Abakuá é mais amplamente comemorada. Abakuá imprimiu uma marca indelével na paisagem cultural cubana, incluindo danzón, música de rumba e o movimento artístico Afrocubanismo dos anos 1920, por exemplo. No entanto, ainda é frequentemente estigmatizada e coloquialmente conhecida como Ñañigos, um termo indiscutivelmente pejorativo ligado à criminalidade na cultura popular cubana. Como muitos relatos debatidos de histórias orais, permanecem vivas diversas variações desses mitos, codificações e suas cronologias.
Embora a própria Ayón fosse ateia, ela se apropriou das crenças Abakuá em sua obra, a fim de oferecer uma dialética feminista, de acordo com membros da sociedade com a qual ela mantinha relações profissionais próximas. O objeto de afeto de Ayón dentro do mito da origem foi a princesa Sikán, condenada à morte por sua comunidade depois de ter revelado conhecimentos esotéricos a seu amante de uma nação vizinha. Os segredos foram transmitidos pela voz do peixe “ekué”, uma reencarnação do velho rei Obón Tanzé, a quem Sikán encontrou por acaso em um rio sagrado. Em muitos aspectos, a história de Sikán tornou-se um conto de advertência e mais um motivo para banir as mulheres de Abakuá à medida que eram percebidas como incitadoras de conflito – uma narrativa semelhante ao pecado original de Eva na Bíblia.
Belkis Ayón (1967-1999), vista da exposição na 59ª Bienal de Veneza, Sem título (A corda e o fogo), colografia em papel, 1996. Foto: C& América Latina, Eduardo Nasi. Cortesia: The Belkis Ayón Estate.
Não há nada de silencioso nas obras de Ayón: um sentido dramático se desenvolve em suas composições, de forma muito semelhante a uma pintura panorâmica renascentista. Sikán está no meio dos homens, uma presença dominante em gestos ousados e sutis. Em La Cena (A ceia), Ayón justapõe o Abakuá iriampó (banquete de iniciação) e a composição do clássico europeu Última Ceia, o banquete cerimonial que precedeu a crucificação de Cristo. Substituído por Sikán, Cristo aparece com mulheres discípulas a seu lado. As figuras projetam-se das bordas, convidando quem observa a participar dessa contranarrativa sincrética e disruptiva. Os quadros em tamanho real de Ayón exibem qualidades arquitetônicas judaico-cristãs de vitrais, arcos góticos e tetos abobadados. Eles parecem transcendentais, como altares ou uma encenação teatral de um ritual. As qualidades estruturais podem falar de hierarquias e da estratificação do poder político, refletindo a crise existencial da sociedade cubana na década de 1990. As obras de Ayón desmontam visualmente estruturas hegemônicas e patriarcais, enquanto muitas vezes (re)lembram histórias de assombração. Abakuá foi certamente um veículo para a historicização da tradição africana e de sua resistência à opressão cultural. O conceito foi operacionalizado como veículo anticolonial contra o domínio espanhol depois da formação de calbidos (grupos nacionais) em toda a colônia. Embora em estreito paralelo com o modelo original Ékpè, Abakuá é às vezes comparada às tradições rebeldes cimarrón (quilombolas) do Caribe. Para mim, Ayón foi capaz de reconhecer, abraçar e criticar o papel de todas as instituições em jogo. Ela estava em diálogo constante com o passado, o presente e o futuro a partir da posição de uma mulher negra cubana.
Ayón retratava frequentemente silhuetas andróginas, em forma de espectros adornados, carregadas de simbologia sagrada e envoltas em mistério. Suas personagens são exemplos de figuração e transfiguração em virtude de seu processo e síntese visual. O aspecto mais notável está em seus olhos peculiares e rostos sem expressão derivados de máscaras Abakuá íreme. Motivos recorrentes são totens, como a serpente e o peixe, e oferendas de sacrifício como o bode e o galo, muitas vezes reimaginados por Ayón. O Sese Eribo (tambor de iniciação), adornado com penas, conchas e outras marcas, também é referenciado em suas obras. Os simbolismos cristãos, como a pomba referente ao Espírito Santo, são justapostos com geometrias criptografadas e símbolos Abakuá conhecidos como Anaforuana ou Gandó. Esses símbolos são derivados do Nsìbìdì, um antigo sistema de escrita desenvolvido por Ékpè na Nigéria/em Camarões, a mesma letra evocada na simbologia Vèvè no Haiti. Anaforuana foi documentada pela etnógrafa cubana Lydia Cabrera, para quem Ayón lê, oferecendo uma visão parcial das situações e personagens retratadas em sua obra. Para mim, os cológrafos de Ayón também podem ser metaforicamente comparados ao tecido ukara, tingido de índigo do Ékpè, por seu foco no cerimonial. Acredita-se que o tecido seja transformado em um objeto ritual quando símbolos Nsìbìdì são inscritos nele. O processo de impressão de Ayón envolve cascas vegetais e tintas em sua matriz, colocando camadas e combinando folhas de papelão como um quebra-cabeça. Seu uso ocasional de destaques amarelos e brancos pode fazer referência ao giz codificado, usado nas cerimônias de Abakuá, e a história contada de Moruá Engomo, que trouxe o giz para a prática Ékpè. Durante seus últimos anos, Ayón optou por abandonar a cor em prol de uma paleta monocromática de escala cinza. As verdadeiras procissões de máscaras Abakuá são cromáticas e altamente animadas; um movimento que agora transcende esses retratos estáticos para registrar e nos mover internamente.
Belkis Ayón (1967-1999), vista da exposição na 59ª Bienal de Veneza, A Pesca, colografia em papel, 1989. Foto: C& América Latina, Eduardo Nasi. Cortesia: The Belkis Ayón Estate.
Ayón’s goal was never to perpetuate the Abakuá myth but to subvert and transgress it.
O objetivo de Ayón nunca foi perpetuar o mito Abakuá, mas subvertê-lo e transgredi-lo. Para mim, ela exibe uma prática de remixagem: “ um ritual religioso que remove demônios do medo e libera a imaginação”, um conceito emprestado do ensaio lírico de Binyavanga sobre o artista Wangechi Mutu. Artistas negros em toda a Diáspora há muito lutam com questões de deslocamento e temporalidade para evocar novas visões. Embora a obra de Ayón certamente reflita narrativas históricas, ela é também altamente metafórica e autobiográfica. “Eu me vejo como Sikán, de certa forma como uma observadora, uma intermediária e uma reveladora. Como não sou crente, crio suas imagens a partir de meus estudos e experiências. Sikán é uma transgressora e como tal a vejo, e me vejo”, é uma das citações de sua retrospectiva no Museu Reina Sofia. “Acho que essas gravuras poderiam ser um testemunho espiritual, se você quiser. Não vividas em minha própria carne, mas imaginadas” – é o que ela elabora na carta de “confissões”, publicada em seu legado. Em essência, Ayón emprega a noção de Saidiya Hartman de “fabulação crítica”: “ao brincar e reorganizar os elementos básicos da história, ao representar a sequência de eventos em histórias divergentes, a partir de pontos de vista contestados […] para comprometer o status do evento e deslocar a conta recebida ou autorizada”.
A obra de Ayón não existiu sem um fardo, o que ficou evidente quando a artista tirou a própria vida aos 32 anos. O chiaroscuro de seu cológrafo, a leveza e a escuridão, tornam-se metáfora das ameaças que a cercavam enquanto ela mergulhava no terreno contencioso da Cuba pós-Guerra Fria. “Sikán, mulher predominante nas obras apresentadas, porque ela, como eu, viveu e vive através de mim em inquietação, insistentemente procurando uma saída”, é o que compartilha Ayón em uma carta de 1998. Sikán tornou-se seu alterego, com características baseadas no próprio corpo de Ayón. Os temas recorrentes de inquietação, traição e saudade revelam o estado profundamente conturbado e a angústia que consumiu a imaginação da artista antes de ela transcender. Mapeando uma história de Abakuá, desde a bacia do Rio Cross até suas formações plurais na Diáspora, é evidente como a prática sincrética foi catártica e disruptiva. As origens de Ékpè foram usadas para gerenciar a diversidade com respeito mútuo, uma prática que parece sustentar alguns dos trabalhos de Ayón. Mas por que nunca ouvi falar de Abakuá em seu berço, na minha terra natal Camarões? É claro que o mistério e as lacunas na história africana resultam do apagamento ativo e da difamação do período colonial. Ayón reconhece que “há inúmeras variações de imagens populares quando se conta como os eventos que deram origem a esse tipo de sociedade secreta ocorreram, e a partir deles mostro minhas variações entrelaçando seus sinais com os meus”. Ela (re)inventou e deixou para trás um mundo para refletir. Ao mesmo tempo, deixou um comentário sobre a Diáspora e uma contra-imagem sobre realidades racializadas e de gênero.
Ethel-Ruth Tawe é criadora de imagens, contadora de histórias e viajante no tempo baseada entre continentes. É artista multidisciplinar, curadora e escritora que explora memória e arquivos em toda a África e na Diáspora. Leia mais em: artofetheltawe.com ou @artofetheltawe.
Tradução: Soraia Vilela