Duas Bienais – dois países

De Dakar para o mundo – do mundo para Havana

Como parte de nossa série de pequenos textos sobre bienais, Sabrina Moura prepara o terreno para uma discussão sobre as bienais de Dakar e Havana.

Tais políticas culturais seminais forjaram as condições para a criação das Bienais de Havana e Dakar, entre os anos 1980 e 1990. Separadas cronologicamente pela queda do muro de Berlim, em 1989, ambas as mostras buscavam renovar os modelos de intercâmbio cultural herdados da experiência colonial e, posteriormente, da Guerra Fria. Ambas as plataformas adotaram agendas que revelaram uma nova relação entre bienais e estado. À exemplo da Bienal de Havana, fundada em 1984 sob os auspícios do Ministério da Cultura, para “assegurar uma nova importância para Cuba na América Latina, bem como no bloco do Leste” (2). Ou da Bienal de Dakar, criada em 1990, durante o mandato do então presidente Abdou Diouf, em resposta às demandas de artistas e intelectuais senegaleses por uma atuação do estado na promoção de uma plataforma cultural pan-africana.

Eles invocam o chefe de Estado e seu papel de patrono das artes, citando a obra de Senghor, seu apoio a cultura, e a glória do Festival Mondial des Arts Nègres de 1966 como símbolos da vitalidade criativa e intelectual africana e da capacidade do Senegal de se posicionar como plataforma e porta-voz de todo o continente. (3)

Enquanto a Bienal de Havana promovia uma retórica terceiro-mundista no campo das artes, alinhada, por sua vez, às ambições do soft power cubano, a Bienal de Dakar buscava se posicionar em relação à dialética senghoriana do enracinement et ouverture(4). Ambas as Bienais afrontam o lugar referencial do modernismo e da contemporaneidade euramericana nas artes.

Inicialmente restrita à produção artística latino-americana e caribenha, a Bienal de Havana expandiu gradualmente seu escopo curatorial para contemplar trabalhos provenientes da África, Ásia e Oriente Médio. Tal movimento culminou na icônica 3ª Bienal de Havana (1989), intitulada Tradição e Contemporaneidade nas Artes do Terceiro Mundo, cujo projeto expositivo era alinhado à geopolítica das artes que ganhou corpo na década de 1980. Três anos depois, Dakar abria as portas de sua bienal com uma proposta de alternância entre literatura e artes plásticas. Em pouco tempo, essa pauta caiu por terra, dando lugar a uma mostra bienal que passou a se chamar Dak’art, e cujo foco foi direcionado às diversas linguagens das artes visuais, sem restrições de nacionalidade. Ao contrário de Havana, Dakar abraçou uma perspectiva regional essencialmente voltada à comunidade artística africana e sua diáspora, uma vocação pan-africana, sobre a qual discorre Yacouba Konaté, curador geral da 7ª Dak’art:

A Bienal de Dakar afirma a produção dos artistas africanos, em geral, como sua marca. Desde 1996, tem se apresentado como a Bienal Pan-africana das Artes. Posicionando-se como tal, Dak’Art tomo como centro de gravidade o emaranhado da história global do continente negro com as micro-histórias, edificantes em vários níveis, de indivíduos e coletivos que se identificam, ou por completo, ou em parte, com seu destino, enquanto causam, ao mesmo tempo, seu movimento – um pouco como o homem que tanto carrega, quanto projeta sua sombra ao andar. Dak’Art levanta a cabeça e fala para a África e em nome dos africanos.(5)

Ao advogar outros contextos e enquadramentos expositivos para a produção artística não ocidental, as bienais em questão nos ajudam a repensar algumas categorias consolidadas no campo da história da arte, incluindo marcadores temporais e geográficos, como a ideia de uma essência identitária que permearia as noções de arte africana ou latino-americana.

Nessa série, vamos tratar de várias questões que surgem da intersecção de tais projetos culturais: O que os intercâmbios artísticos entre essas bienais revelam sobre as redes culturais que conectam a África e a América Latina? Como essas estratégias de exposição dialogam com as ideologias emancipatórias e projetos como o anti-imperialismo, o pan-africanismo, terceiro-mundismo, e a noção do Sul global? Como Havana lida com a produção de arte africana; e que papel está reservado em Dakar à arte da diáspora?

 

Sabrina Moura é curadora e editora radicada em São Paulo (Brasil). Atualmente, é doutoranda no Departamento de História da Universidade de Campinas.

 

(1) Iniciadas em 1959, as políticas culturais cubanas pós-revolução fundaram instituições como a Casa de las Américas, o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC), a Orquestra Sinfônica Nacional, entre outros. Durante o mandato de Senghor, o Senegal foi sede do Festival Mondial des Arts Nègres, e fundou o Musée Dynamique, o Théâtre National, e a École des Arts du Sénegal, entre outras instituições.

(2) Belting, H et al.The global contemporary and the rise of new art worlds, 2013. Também referência a Rojas Sostelo, M. The Other Network: The Havana Biennale and the Global South, The Global South, Vol. 5, Nr. 1, 2011.

(3) Pensa, Iolanda, La Biennale de Dakar comme projet de coopération et de développement, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 2011.

(4) Abdoulayé Wade, Catálogo da the 5ª Bienal de Dakar, 2002, 5.

(5) Konate, Yacouba. “Dak’Art: The Making of Pan-Africanism & the Contemporary.”Art in Translation 5:4, 2009, 487-526. Também referência aos escritos de Ugochukwu-Smooth Nzewi’s e Cédric Vincent’s sobre a Dak’art, incluindo a edição especial da Contemporary And (C&); sobre essa bienal (versão impressa, nr. 1, Abril, 2014).

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