A centralidade do ser humano também é encontrada nas artes com ideologias não menos nefastas que na política. Tomemos como exemplo terra0 [4], um projeto dos artistas Paul Seiler e Paul Kolling, lançado em 2016. A ideia por trás do terra0 é criar uma área autossustentável da floresta alemã, para cuja exploração madeireira o software da floresta venderia de forma autônoma licenças de exploração em blockchain, monitorando seus recursos sem qualquer intervenção humana. O objetivo é criar a primeira entidade não humana de propriedade própria do mundo, em que a floresta eventualmente compra suas terras de volta dos projetistas do sistema.
O uso da tecnologia blockchain para cuidar do meio ambiente não é apenas um oxímoro (dado o alto custo energético das transações), como a aplicação em uma floresta de práticas regulatórias inspiradas em humanos erra o ponto da ecologia. Em maio, até o duvidoso Tesla [5] anunciou que não aceitaria mais pagamentos em bitcoins devido ao impacto da mineração da moeda virtual. “Para imaginar uma antropologia que vá além do ser humano e que não projete simplesmente qualidades humanas em todos os lugares, devemos situar a moralidade ontologicamente”, diz Eduardo Kohn sobre a maneira como os humanos devem se relacionar com a natureza, se quisermos descentralizar o ser humano. Ele também elucida que os mundos possíveis que imaginamos com outros seres devem apresentar uma prática ética de esclarecimento sobre que tipo de florescimento queremos incentivar e a que custo.
Recentralizar a flora e a fauna na epistemologia também significa abraçar as limitações do ser humano e desconstruir o mito do salvador masculino branco e de seu capitalismo tecnopatriarcal, como teorizado por Paul B. Preciado em Testo Junkie (2008), e explorado em Operation Sunken Sea (Operação mar afundado, 2018), de Heba Y. Amin, bem como em 1620, de Trisha Baga (2020), e em DRRRUMMERRRRRR, de Nikita Gale, (2019/21), ambos em exibição atualmente, em Cincinnati e em Berlim. De acordo com a cultura indígena na América Central, muitas das soluções que os humanos buscam sempre estiveram lá, como o respeito maior pela natureza, a interconexão do planeta e do universo, e a falta de hierarquias entre natureza, animais e seres humanos. Kohn também explica que, quando voltamos nossa atenção etnográfica para a forma como nos relacionamos com outros tipos de seres, nossas ferramentas antropológicas (que têm o efeito de nos divorciar do resto do mundo) se desligam. Nesse sentido, é o conhecimento indígena que pode funcionar como ferramenta de reposição para reconfigurar a maneira como a vida pode existir e prosperar na Terra. Como aponta Frank B. Wilderson III: a capacidade total da vida só pode ser conhecida através de sua outra.
Na instalação de vídeo e performance de Grada Kilomba Ilusões vol.I, Narciso e Eco, 2017, a artista conta uma história sobre como, assim como ocorre com Narciso, a cultura branca é obcecada por si mesma. Também como Narciso, animais pensantes são obcecados por si mesmos. Mas no (como diz Bell Hooks) patriarcado capitalista branco classista, essa obsessão em centralizar o ser humano não apenas vem às custas da natureza, mas também às custas dessas sociedades que ainda são tratadas como menos do que humanas – qualquer um que cai da matriz cis masculina branca e rica. Isso explica como foram necessários protestos globais para que George Floyd pudesse ter o mínimo de justiça, quando seu assassino foi condenado [6] – justiça que não foi concedida a Breonna Taylor; ou por que protestos pacíficos pró-Palestina foram recebidos com violência policial em Paris [7] e Berlim [8] ; ou por que trabalhadores sexuais trans HIV positivos na Colômbia são excluídos da atenção médica[9] ; ou por que ainda não temos uma pílula anticoncepcional masculina.
Com isso, para realmente descentralizarmos o humano e assim salvarmos o que resta do nosso planeta, a sociedade como um todo também precisa reavaliar e redefinir o ser humano e sua animalidade genocida em relação a uma natureza não menos inferior, na teoria e acima de tudo na prática.
Will Furtado é artista, escritor e editor adjunto da Contemporary And (C&).
How Forests Think – Towards Antrology Beyond the Human (Como as florestas pensam – rumo a uma antropologia além do humano), de Eduardo Kohn, é um dos livros apresentados no C& Center of Unfinished Business (Centro C& de Negócios Inacabados), em uma cooperação entre o Kunstraum Kreuzberg e a Contemporary And (C&).
[1] https://www.nature.com/articles/s41558-020-0797-x
[2] https://www.theguardian.com/world/2021/may/08/as-the-global-family-shrinks-migrants-and-the-planet-benefit
[3] https://balkaninsight.com/2020/02/17/the-strategic-reason-for-hungarys-free-fertility-plan
[4] https://terra0.org
[5] https://www.thedrive.com/news/40588/tesla-will-stop-accepting-bitcoin-over-environmental-impact-of-mining
[6] https://www.bbc.com/news/world-us-canada-56818766
[7] https://www.reuters.com/world/middle-east/french-police-clash-with-pro-palestinian-protesters-paris-2021-05-15/
[8] https://www.dw.com/en/israel-gaza-crisis-police-break-up-pro-palestinian-rallies-in-german-cities/a-57540780
[9] https://www.buzzfeednews.com/article/otilliasteadman/alejandra-monocuco-colombia-trans-sex-worker-hiv
Tradução: Cláudio Andrade