A exposição How to Be Happy Together?, em cartaz no Para Sites, em Hong Kong, trata de temas como colonização e domínio, nos âmbitos econômicos, políticos e também das corporeidades, convidando a refletir sobre as dores enquistadas na América Latina e na Ásia a partir de uma perspectiva de multiplicidade.
Detalhe de Ocean Leung, Double Happiness (Felicidade dupla), 2020, duas cadeiras de plástico queimadas. Cortesia do artista. Foto: South Ho.
Vista da exposição How to be Happy Together? com o trabalho de Xiyadie, Kaiyang, Para Site, Hong Kong, 2024. Foto: Felix SC Wong.
Vista da exposição How to be Happy Together? com o trabalho Juntitud, Abraham Cruzvillegas, Para Site, Hong Kong, 2024. Foto: Felix SC Wong.
Quão longe é preciso ir para chegar mais perto? Eu viajei de Berlim para Hong Kong para encontrar a América Latina, meu lugar de origem. Para os personagens do filme Happy Together (1997, Hong Kong) de Wong Kar-Wai, a Argentina é a antípoda de Hong Kong, e é para lá que eles viajam em busca de algo perdido, que pudesse lhes devolver uma certa intimidade que talvez tenham tido algum dia. O filme serviu de inspiração para a mostra coletiva How to Be Happy Together? (Como ser feliz juntos?), com curadoria de Zairong Xiang, em cartaz no espaço de arte contemporânea Para Site.
Muitos trabalhos da mostra apresentam traços dessa perda, que às vezes é expressa por uma certa melancolia, outras, por uma tentativa de reivindicar um passado e, por que não, um presente e um futuro mais justos, para além das diversas formas de exploração sofridas — desde a colonização das Américas até a dominação dos corpos e dos desejos. A exposição reúne trabalhos de mais de 20 artistas da América Latina, Europa, China continental, Taiwan e Hong Kong. O trabalho de Bruno Zhu, Call me, recebe o visitante logo na entrada. Trata-se de uma cruz católica, composta por embalagens grampeadas de camisinhas estampadas com a palavra em espanhol control (controle): um controle do prazer que se dá em muitos âmbitos, seja o filosófico, o religioso, o existencial ou o físico.
Bruno Zhu, Call me (Me liga), 2023–2026. Cortesia do artista.
Um controle do prazer que se dá em muitos âmbitos, seja o filosófico, o religioso, o existencial ou o físico.
Outros trabalhos também se conectam ao corpo desejante, tanto em termos de prazer quanto de dor, ou como uma forma de intermediar o contato social. Luke Ching, no vídeo Narcissist (Narcisista), cria um molde do próprio ânus, que usa como um caleidoscópio para ver o céu. Já na videoinstalação Fireflies (Vagalumes), Pauline Curnier Jardin & Feel Good Cooperative, apresentam um vídeo sensorial com trabalhadoras sexuais trans que transitam entre o profano e o sagrado em um universo belo e onírico. Duas cadeiras vermelhas empilhadas e parcialmente derretidas, o trabalho Double Happiness (Felicidade Dupla), de Ocean Leung, cristalizam na forma estética essa relação entre corpo, desejo e domínio, além de evidenciar a perda de algo que não pode ser recuperado. O ápice dessa temática é o trabalho de Xiyadie, Kaiyang, um painel em que o artista usa recortes em papel tradicional chinês para criar uma orgia numa sauna masculina localizada ao sul da Praça da Paz Celestial, em Pequim. A força política e social desse trabalho convida a pensar no controle exercido por diferentes potências — governamentais, privadas ou sistemas econômicos— sobre o desejo das pessoas. Se aniquilarmos o desejo, teremos melhores trabalhadores e consumidores, o que se traduz em uma sociedade mais funcional em termos neoliberais. O desejo vivo e ativo traz o perigo de uma subjetividade empoderada e menos produtiva.
Seguindo na esfera política, a colonização e a dominação econômica são temas caros aos dois continentes e adquirem vários tons na exposição. Mimian Hsu apresenta No. 1674, Sección Administrativa, Versión 1&2 (Nº. 1674, Seção Administrativa, Versão 1&2), um trabalho que aponta para a história de racismo exacerbado, que é parte de herança colonial da América Latina. A obra consiste em um lençol de seda vermelho, em que está bordado uma carta de trabalhadores chineses para o governador da Costa Rica, enviada na época da promulgação das leis anti-imigração de chineses. Na carta, eles solicitam a reunião familiar com suas esposas, apesar de pertencerem a “una raza generalmente no querida” (uma raça geralmente indesejável).
Vista da exposição How to be Happy Together? com o trabalho Sección Administrativa, Versión 1&2, Mimiam Hsu, Para Site, Hong Kong, 2024. Foto: Felix SC Wong.
O título da exposição também traz reverberações do livro Como viver junto, de Roland Barthes, no qual o autor reflete sobre formas de viver em grupos, a partir de modelos de coabitação que não destituem as liberdades individuais. Literalmente no centro da mostra, está a obra Juntitud, de Abraham Cruzvillegas, desenvolvida especialmente para a exposição. O neologismo do título aponta para uma forma de estar junto, como se diria em inglês Togetherness, uma palavra sem tradução direta para o português ou espanhol, mas que invoca um sentido de coletividade. Cruzvillegas constrói suas instalações com materiais fornecidos pela galeria, a partir de um protocolo que ele envia com antecedência, solicitando materiais que possam efetivamente ser utilizados. No local, o artista cria a partir do que lhe foi dado, sem excluir nada, buscando harmonia na diferença e na não-exclusão. Seus trabalhos aludem à precariedade da moradia em diversos países do mundo, como as favelas do Brasil ou os sistemas de autoconstrução no México, onde o trabalho comunitário, a inventividade e o improviso, embora marcados pela necessidade, criam uma possibilidade de moradia, mesmo que temporária. O trabalho também faz referência a Helio Oiticica e à escola de samba Mangueira, ao utilizar as cores verde e rosa.
Um dos problemas do viver-junto, de acordo com Barthes, é o que ele chama de encontrar e regular a distância crítica, para além e para aquém da qual se produziria uma crise. Se é preciso viajar para uma antípoda para encontrar-se e, dentro de uma diferença quase radical, encontrar aspectos profundamente semelhantes, a exposição nos propõe que a ideia de distância real e física pode ser repensada a partir de uma outra perspectiva que passe pela afetividade e pelo desejo, uma distância subjetiva que, dependendo dos discursos de poder, pode ser encurtada ou alargada.
Nesse sentido, não se trata mais de buscar um ideal de unidade, mas a dualidade passa a ser uma chamada à multiplicidade. Só quando a multiplicidade e a diferença são celebradas no viver-junto, que talvez alguns momentos de felicidade, mesmo que efêmeros, possam ser possíveis.
How to Be Happy Together? está em cartaz até 13 de abril 2025, no Para Site.
Camila Gonzatto é editora da C&AL.