Conversa com

Eva de Souza: experimentações têxteis como forma de protesto poético

Atriz, ativista e referência no chamado Craftivism — intersecção entre arte têxtil e ativismo político —, Eva transforma tecidos em territórios de memória e denúncia. Suas obras abordam com sensibilidade e força temas como território, nacionalidade, racismo, violência policial e a condição da mulher negra, fazendo do bordado um instrumento de elaboração subjetiva.

C& América Latina: O bordado aparece na sua prática como um gesto de resistência, mas também de cura. Quando e como você percebeu que o fazer têxtil poderia ser um caminho político e poético?

Eva de Souza: Estudei o uso de máscaras em Berlim, no contexto do teatro de rua, mais especificamente a Commedia dell’Arte. No entanto, o objetivo principal das minhas pesquisas foi o estudo de máscaras remanescentes de tradições africanas e rituais no Recôncavo Baiano. Tradições como o Zambiapunga, o Nego Fugido e as Caretas do Acupe, presentes em grupos remanescentes de quilombolas na Bahia.

Nesse contexto, pesquisei também a roupa ritual do Babá Egum, o rito dos ancestrais em Itaparica. No universo artístico e cultural, máscaras e roupas se complementam. Bordados, aplicações e composições de trajes completam a performance das máscaras.

A obra de Arthur Bispo do Rosário foi um ponto de partida para os meus bordados. Em 2009, conheci pela primeira vez sua obra por meio de catálogos e filmes documentários, e fiquei fascinada por sua biografia e produção artística. Comecei a estudar seu trabalho e, ao mesmo tempo, tecer paralelos com o que eu queria elaborar como narrativa artística. Percebi que o bordado poderia me trazer muitos benefícios em termos de autocura. Vi a possibilidade de tratar feridas sociais através de gestos de ternura, atenção e cuidado. Eu queria lidar com esses temas difíceis, mas percebi que precisava me curar antes disso.

Logo compreendi que o tratamento de cores e texturas que eu já utilizava no meu trabalho com máscaras poderia ser transportado para os painéis bordados. Minhas imagens se constroem em camadas, como máscaras. A escolha dessa técnica simples também me aproxima das pessoas que lidam com esses tipos de violência.

Foi assim que surgiu a primeira série de painéis com temas ligados à violência — como o abandono, a violência policial, a invisibilidade e o esquecimento — sempre com uma mulher negra no centro da narrativa.

C&AL: Seu trabalho frequentemente convoca o público à participação e à escuta. Como você percebe os efeitos dessas experiências compartilhadas? De que maneira elas influenciam a continuidade ou transformação de uma obra?

ES: Acredito que a minha personalidade orienta essa relação participativa e colaborativa que chamo de “arte do encontro”. Elaboro encontros e convido pessoas a participarem, trazendo suas próprias experiências para compartilhar comigo. Assim, a gente soma.

Em uma sociedade competitiva e meritocrática — como a Suíça ou, de forma mais ampla, a sociedade ocidental capitalista — esse tipo de encontro gera transformações, mesmo que sejam pontuais. Conceitos como coletividade já saíram de moda, no entanto, esses encontros provocam mudanças de estado de espírito, criando momentos de segurança e acolhimento. A arte proporciona isso. E é isso que eu proponho como arte.

C&AL: Quais são os desafios e as possibilidades de manter uma prática artística transnacional entre o sul global e o centro europeu? Há algo que você gostaria de construir nos próximos anos a partir desse trânsito?

ES: Obrigada por me perguntar isso. Porque não poderia deixar de dizer que o desejo de tecer essas conexões passa, justamente, por essas colaborações e por agentes como você e a Contemporary And.

Tenho um projeto em curso, que é o retorno dessas experiências à origem, ou seja, levar a experiência artística da “arte do encontro” para mulheres negras baianas que sofreram violências e, com elas, construir um manifesto artístico e político a partir da nossa perspectiva de futuro.

Esse trabalho está em elaboração e precisa de parcerias internacionais, pois envolve uma abordagem interdisciplinar de temas políticos e pessoais que vão além da arte. Vou desenvolver esse projeto em parceria com a organização Odara — um centro de referência de mulheres negras feministas que oferece apoio a mulheres e familiares de vítimas de violências sociais, em Salvador.

Juntas, estamos planejando tecer diversas linguagens artísticas para relatar o que estamos sonhando e apresentar isso em plataformas internacionais. O projeto prevê em uma exposição em Berna e em Salvador.

Gabriel Reis é curador, advogado e gestor cultural. Mestre em Filosofia do Estado pela UFMG, atuou como curador adjunto do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea e, atualmente, integra o Conselho Jurídico do Museu Nacional de Belas Artes. Sua pesquisa abrange as relações entre arte, política e formulações de Estado.

Eva de Souza já expôs no Brasil, na Alemanha e na Suíça. Suas obras de caráter sociopolítico, marcadas por uma linguagem formal expressiva e por um conteúdo desafiador, resultam de um profundo envolvimento pessoal. Paralelamente à sua prática artística, conduz projetos de educação artística emancipadora para crianças e adultos, incentivando a expressão performática e visual e valorizando igualmente a forma e o processo.

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