Dos Brasis: Arte e Pensamento Negro é uma exposição notável no cenário artístico brasileiro, reunindo obras de 240 artistas negros de todo o país. Dividida em sete núcleos temáticos, a exposição aborda questões como revisão histórica e representação feminina, destacando histórias como a de Judith Bacci, que passou de zeladora a artista.
Obras de André Vargas, No Martins e bandeira da escola de samba Mangueira na entrada do primeiro pavilhão de Dos Brasis. Foto: Eduardo Nasi
Vista da instalação, abertura Exposição Dos Brasis. Foto: Matheus José Maria.
Judith Bacci é uma artista praticamente desconhecida no mundo das artes visuais. Sua estreia não foi em uma vernissage, mas como zeladora do prédio da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Pelotas, uma cidade no sul do Brasil, um país dividido por um abismo social que torna muito difícil a ascensão social de um zelador ou uma mulher negra. Judith acabou se tornando assistente das aulas de escultura e, com o tempo, virou artista. Teve pouca repercussão, foi vítima de racismo. Os alunos do curso de artes da Ufpel, contudo, a consideravam uma professora extraoficial da disciplina de escultura. Sabia sobre as lides do ofício de escultor como poucos e dividia seu conhecimento com os alunos – quase todos brancos. Nunca ganhou salário de docente nem foi reconhecida. Isto é, até agora, em uma exposição em cartaz em São Paulo.
Na mostra Dos Brasis, Judith participa com uma escultura pequena, de gesso, que retrata uma ama-de-leite Negra que alimenta um bebê branco. Singela e sublime, a obra é um dos grandes baques que a exposição proporciona. Também sintetiza a biografia da artista, que alimentou e formou filhos das famílias brancas sem ser reconhecida por isso. E, por fim, remete a todo um legado da escravidão e a toda uma relação de raça que permeia o mundo da arte, que, a despeito dos esforços, tantos os antigos quanto os recentes, está repleto de apagamentos como os que Judith Bacci sofreu.
Obra de Judith Bacci. Foto: Eduardo Nasi
Com 240 artistas e mais de 400 obras, Dos Brasis: Arte e Pensamento Negro vem sendo alardeada como a exposição com maior número de artistas Negros já realizada no país. As obras começam a ser expostas já no portão do Sesc Belenzinho, em São Paulo, tomam conta de todo o pátio, se misturam com o playground e as quadras de esporte (voltaremos a esse ponto), antes de se acumularem em duas áreas expositivas e em um hall. Trata-se de uma exposição de superlativos. Se a arte fosse uma corrida de tiro rápido, Dos Brasis garantiria um lugar no topo do pódio: além do recorde de artistas Negros reunidos, há entre eles nomes de todos os estados brasileiros, além de pessoas dos mais diversos gêneros, desde o século 18 até hoje. Muitos deles, como Judith Bacci, com uma produção tão fecunda quanto ignorada. Só que Dos Brasis é ainda mais do que uma única exposição. Estamos falando de um projeto de longo prazo, com previsão de viajar o país inteiro ao longo de uma década. Além de recortes da mostra que está em cartaz, há um projeto educativo e de debates. Em dez anos, espera-se que o sucesso do projeto faça com que ele deixe de ser necessário. Evidentemente, toda essa abundância do projeto revela a dimensão da própria arte produzida por artistas Negros brasileiros. Fica cada vez mais constrangedor para um eventual curador ou crítico racista dizer que não existem artistas Negros – eles não só existem, como estiveram por aqui desde sempre. “O silêncio dos artistas Negros nunca existiu. O que existiu foi uma escuta seletiva dos artistas Negros”, disse o curador Igor Simões. É esse apagamento que está em processo de reversão. Por isso, é especialmente importante que a base de lançamento de Dos Brasis seja o Sesc Belenzinho.
Obra de Augusto Leal nas áreas públicas do Sesc Belenzinho. Foto: Eduardo Nasi
Um pouco de contexto: o Sesc é uma entidade privada, mantida pelo recolhimento compulsório que sai da folha de pagamento das empresas. Esse recurso financia desde serviços de saúde, dentistas, lazer, esportes e alimentação a preços convidativos. Cultura corresponde a uma parte pequena do orçamento do Sesc. Artes visuais, então, têm recursos ainda menores. A maior parte do público que acessa as unidades do Sesc que se espalham por São Paulo estão em busca de outras coisas que não são arte. Quando se entra especificamente no Sesc Belenzinho, além do setor administrativo do Sesc São Paulo, há quadras esportivas, um restaurante, um palco para shows e um complexo de piscinas. Em dias quentes, a piscina fica lotada, e há aulas que misturam hidroginástica e dança de uma forma especialmente performática, em que os espaguetes coloridos são agitados pelos participantes. Mais da metade dos Sescs de São Paulo fica na região central da cidade – uma megalópole com uma grande concentração de equipamentos culturais. Para certa parte da elite cultural paulistana, um trocadilho rebatiza o Sesc Belenzinho, que virou “Sesc Bem Longinho”. É oportuno, diante de Dos Brasis, perguntar: bem longinho de onde? E de quem? O complexo sistema viário da cidade realmente dificulta o acesso, embora de metrô, saindo do centro, seja uma viagem de não mais que 20 minutos. Por outro lado, o Sesc Belenzinho fica numa região que liga o centro com a Zona Leste de São Paulo – onde a periferia da cidade, uma região predominantemente Negra e pobre, se estende para além dos limites da própria cidade, misturando-se com uma série de outros municípios da região metropolitana.
Para a população privilegiada, o Sesc Belenzinho pode até ser longe, mas é o Sesc que fica na entrada do centro da cidade. E é também nesse contexto que Dos Brasis está exposta, e isso está longe de ser um dado irrelevante. O impacto da representatividade vai além do mundo fechado das artes visuais e se abre para todo mundo que passa pelo Sesc – não é pouca coisa, e a futura itinerância da mostra pelo país só tende a ampliar exponencialmente esse efeito.
Se Dos Brasis é didática e taxativa para o mundo das artes visuais (“os negros estão aqui”, ela reafirma, insistentemente), também é generosa para uma audiência mais ampla. A curadoria de Igor Simões, com os curadores adjuntos Lorraine Mendes e Marcelo Campos (além de Hélio Menezes, que deixou o projeto ao se tornar co-curador da Bienal de São Paulo deste ano), parece perceber esse potencial do Sesc ao não restringir a mostra aos espaços expositivos. Já no portão da unidade Belenzinho, o visitante é recebido pela escultura de aço Exu, do mineiro Jorge dos Anjos. Em seguida, as instalações de Rommulo Conceição e Agrade Camíz se misturam aos brinquedos do playground, e as goleiras de O jogo!, de Augusto Leal, com as quadras esportivas. Leal tem outro trabalho que unifica os espaços: uma série de placas que imitam placas de trânsito. Elas se misturam com os espectadores justamente com avisos de piso produzidas por Charlene Bicalho a partir de conversas com os trabalhadores que atuam na exposição. Se o ato de ir a uma exposição ainda pode soar elitista no Brasil de 2023, Dos Brasis derruba a parede do cubo branco (!) e se espalha por onde as pessoas passam quando vão à piscina ou ao dentista… e isso não é pouco.
Obra de Charlene Bicalho nas áreas públicas do Sesc Belenzinho. Foto: Eduardo Nasi
A mostra é dividida em sete núcleos, que tentam definir um planejamento expositivo que borra os limites, que transforma a saturação em um valor, que ocupa espaços em vez de delimitá-los. Legítima Defesa, por exemplo, reúne obras que fazem um enfrentamento direto contra o racismo e suas consequências. Amefricanas parte do termo cunhado por Lélia Gonzalez para dar protagonismo às mulheres. Romper tem trabalhos que colocam em xeque o que o discurso oficial entendia, até agora, por arte e por Brasil. Organização Já fala sobre coletivos, reuniões e aquilombamentos. Baobá reúne artistas que criam raízes e frutificam com peças totêmicas. Negro-Vida são obras que desafiam qualquer noção de classificação dos artistas. Por fim, Branco Tema mostra os brancos como tema das obras – uma inversão do papel tradicional na arte brasileira, que costuma colocar o Negro (e muitas vezes só a figura fetichizada da mulher negra) como tema dos artistas brancos.
Vista da instalação, abertura Exposição Dos Brasis. Foto: Matheus José Maria
Ambiciosa, abundante, quase enciclopédica, Dos Brasis é um projeto de trajetória longa, que, desde já, se posiciona como uma peça central não só contra o apagamento dos artistas negros e negras, mas também como ponto de partida de uma história da arte brasileira mais Negra, realística e completa – uma arte exuberante, próxima e protagonista.
Eduardo Nasi é jornalista.