Artista visual Sallisa Rosa parte de sua trajetória pessoal para investigar imaginários indígenas em contextos urbanos, sugerindo assim práticas decoloniais nos museus.
Tupilândia, Sallisa Rosa, 2021. Cortesia da artista.
Identidade é ficção, Sallisa Rosa, 2019. Foto: Cortesia da artista.
Oca do futuro, Sallisa Rosa, 2017. Foto: Cortesia da artista.
Escritos urbanos anônimos conseguem muitas vezes traduzir com precisão sensações coletivas cuja origem não se sabe explicar, mas que geram imediatamente o reconhecimento por parte de quem lê. É um pouco essa a impressão que se tem diante da palavra “Tupilândia” pichada nas ruas do Rio de Janeiro – expressão usada para comparar o Brasil com qualquer outro país do Hemisfério Norte (“Enquanto isso, aqui na Tupilândia…”). O humor autodepreciativo naturalizado e aparentemente inofensivo é tão consolidado a ponto de não pensarmos em como a piada parte de uma ideia sem qualquer conexão com a realidade: Seria o tupi, então, o motivo do nosso atraso, uma língua da qual fomos nos livrando há 500 anos?
A pichação foi fotografada pela goiana Sallisa Rosa para uma exposição digital realizada em janeiro de 2021 – o projeto@rua, com curadoria de Rony Maltz – e acabou virando o título de uma nova série em que a artista registra nomes de origem indígena ou indícios de um passado colonial nas ruas do Rio de Janeiro, onde vive. A palavra Tupy surge também no letreiro de uma joalheria popular de duas lojas distintas – ambas com as portas fechadas, cenário típico do centro da cidade em tempos de pandemia. Há também as marcas Pajé Pneus e a Drogaria Tamoio – único estabelecimento comercial aberto. Entre outros escritos e desenhos sobre os muros, surge também a palavra selva e a expressão “índio cracudo” próxima a um coração flechado. Há ainda um enorme painel com a imagem de Dom João VI ao lado de um indígena e, ao fundo, detalhes da Quinta da Boa Vista, que abriga o Palácio de São Cristóvão – antiga residência da família real antes de dar origem ao Museu Nacional.
Identidades indígenas urbanas
A mistura dessas referências nas ruas interessa especialmente à artista, que investiga a identidade indígena contemporânea de quem vive em contextos urbanos, como é seu caso. Quem acompanhou a desocupação violenta da Aldeia Maracanã, epicentro dos protestos de junho de 2013 no Rio, deve lembrar como esse é um tema delicado, já que a própria Fundação Nacional do Índio (Funai) não reconhece a existência de aldeias em locais urbanos – como se não tivessem sido as cidades que passaram a ocupar as antigas áreas indígenas e sim o contrário.
Sallisa Rosa esteve indiretamente envolvida com a Aldeia Maracanã como apoiadora, onde seu pai e seu irmão moraram até que o grupo fosse desalojado do prédio que antes abrigava o Museu do Índio. Ela vive hoje na Aldeia Multiétnica Vertical, projeto de moradia popular construído pelo programa Minha Casa, Minha Vida e para onde foi uma parte do grupo da Aldeia Maracanã, após inúmeras controvérsias. Muitos não se adaptaram, entre eles o pai da artista: “É um lugar cheio de regras, como em qualquer condomínio fechado. Não dá para fazer fogueira e outros rituais”, conta Sallisa Rosa. Filha de pais que foram investigar sua origem indígena apenas depois de adultos, a artista faz parte de uma primeira geração a “assumir essa confusão” com mais tranquilidade. “Me sentia uma personagem, não conseguia me encaixar na ideia que as pessoas tinham do que é ser indígena. Ando de calça jeans e não me sinto confortável, por diversas questões, em usar um cocar”, diz ela.
Tendo crescido em centros urbanos, Sallisa Rosa se acostumou a habitar os dois universos – e muitas vezes a incomodar os dois lados. Em alguns trabalhos, como na série Identidade é Ficção (2019), ela usa a paródia para retratar os estereótipos em como a cultura dos povos originários é representada. Numa das fotos, está prestes a jogar um telefone celular em uma panela; em outra, aparece ao lado de um dinossauro artificial, como se vivesse em passado já extinto. Ainda nessa série, ela também se fotografa com as mãos pintadas de rosa-choque segurando um pequi, imagem que remete à tradição indígena de pintar o corpo com a tinta negra do jenipapo, como as mãos. “É uma provocação também com uma ideia de que essas tradições não podem ser adaptadas. Se não encontrar jenipapo, faz com o que der”, completa a artista.
Decolonização institucional
Outro aspecto no trabalho de Sallisa Rosa é a tensão provocada com os espaços de arte. Mesmo no atual momento em que a decolonização das instituições é um tema tão presente, nem sempre há uma compreensão imediata sobre como lidar com uma tradição na qual não há uma palavra equivalente à noção de arte, muito menos a redução desse conceito a um objeto. Esse foi um dos desafios enfrentados pela equipe curatorial da Dja guata porã: Rio de Janeiro Indígena, realizada no Museu de Arte do Rio (MAR) em 2017 – Sandra Benites, José Ribamar Bessa, Pablo Lafuente e Clarissa Diniz. Foi nessa coletiva, idealizada junto a grupos indígenas da cidade, entre eles ex-integrantes da Aldeia Maracanã, que Sallisa Rosa estreou como artista visual com Oca do Futuro. Resultado de uma pesquisa sobre versões contemporâneas de casas indígenas, a instalação consistia em um pequeno cômodo fechado com uma rede instalada no interior. O título era anunciado em um letreiro de led, parte de uma estética low-tech futurista que se tornaria característica de seu trabalho, e a arquitetura remetia às construções de alvenaria comuns em paisagens urbanas.
No projeto que realizou no ano seguinte, durante o programa Bolsa Pampulha 2018/19, em Belo Horizonte – o plantio de uma horta de mandioca por mais de 100 voluntários convocados com a ajuda do Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas –, os desafios resultaram em um impasse com o Museu de Arte da Pampulha (MAP) sobre o que seria incorporado ao acervo. A sugestão de Sallisa Rosa foi doar a própria horta, feita em um terreno vizinho pertencente ao Museu, naquele momento inutilizado, e não uma fotografia com o registro da ação, como haviam proposto. “A solução que encontramos foi doar a metodologia desse trabalho, já que houve um impasse sobre doar a horta ou a mandioca”.
Pensamento de fronteira
A experiência envolvendo tradições alimentares de povos indígenas se desdobrou em outra residência realizada ano passado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ). Desta vez, sua intenção partia do questionamento sobre aspectos ignorados quando se fala em decolonizar um museu, como a alimentação. “Na cozinha fica muito clara a influência da colonização. Dos alimentos com origem no agronegócio aos funcionários que levam quentinha e do lugar onde comem”. Em Passando pela Peneira, ela elaborou práticas que pensam a cozinha como um espaço social e de troca de conhecimentos, rituais que se aproximam das tradições indígenas. Uma delas foi um piquenique com os funcionários no Aterro do Flamengo, onde cada um deveria levar uma comida e contar o que cozinhou.
O pensamento de fronteira, termo criado pelo teórico argentino Walter D. Mignolo como uma maneira de evitar “tanto o fundamentalismo ocidental quanto o não-ocidental”, é um bom caminho para entender as afirmações de Sallisa Rosa enquanto artista ou como ela se apresenta ao mundo. Especialmente em um momento tão crítico de aniquilação indígena no país, onde o critério de autodefinição defendido por Eduardo Viveiros de Castro vem sendo questionado. A célebre frase do antropólogo – “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é” – parece ecoar na resposta que a artista encontrou para as políticas de apagamento desses grupos. Assumir uma subjetividade múltipla diante da tentativa de eliminação das diferenças é um ato essencialmente político. Ou, como define, “a forma como eu me represento é também um tipo de ativismo”.
Nathalia Lavigne é jornalista, curadora e pesquisadora, mestre em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela Birkbeck, University of London, e doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisadora visitante da Universidade Humboldt de Berlim, contemplada com uma bolsa do DAAD (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico).