A presença intensa do texto como matéria dos filmes de Tony Cokes, embora possa ser pensada simplesmente como uma hipervalorização da palavra enquanto ferramenta de desconstrução, parece indicar, bem mais, uma tentativa de desmontar a continuidade entre imagem e verdade e, em última instância, liberar a imaginação de seu cativeiro na cultura visual contemporânea.
Tony Cokes, Black Celebration, 1988, cortesia Tony Cokes; Galeria Greene Naftali, Nova York; EAI, Nova York.
Tony Cokes, instalação, 10ª Bienal de Berlim, ZK/U Centro de Arte e Urbanismo, Berlim, cortesia Tony Cokes; Greene Naftali, Nova York; Electronic Arts Intermix, Nova York. Foto: Timo Ohler.
O lugar é um porão escuro. Falta ar, o cheiro é forte e a poeira circula pelo ambiente abafado, intensificando a sensação de que estamos nos subterrâneos de alguma coisa. As obras de Tony Cokes na 10ª Bienal de Berlim estão dispostas no porão do ZK/U, em diversas TVs de tubo, estrategicamente posicionadas nos cantos da sala, além de uma projeção no centro onde uma seleção de dois vídeos (Black Celebration, 1988; e Mikrohaus, or the black atlantic?, 2006-08) passa em loop. A montagem reforça o ruído entre os vídeos e produz uma forte malha de sentidos sobrepostos, luzes que interferem umas nas outras, cores e textos que, envoltos pela atmosfera proposta pela montagem das obras (inteiramente formulada pela curadoria), clamam por procedimentos de leitura em que compreender não é tanto o foco quanto ser afetado. Se esses trabalhos afirmam uma posição profundamente implicada na produção de conhecimento teórico, eles criam também um consistente abalo epistêmico e performativo na concepção que temos acerca do que é um texto, e do que significa ler teoria.
Cokes é professor da cadeira Modern Culture and Media na Brown University (Providence, EUA), além de se mover por diversos circuitos de produção de arte contemporânea com sua obra audiovisual. Seu trabalho articula um arquivo inusitado, composto por estudos culturais, música pop e imagens históricas, e interroga, ao reposicionar criticamente os elementos desse arquivo, os modos como dispositivos midiáticos engendram o campo representacional a partir do qual tanto as formas do poder quanto das lutas por liberação frente ao poder se organizam. A intensa presença do texto como matéria de seus filmes, embora possa ser pensada simplesmente como uma hipervalorização da palavra enquanto ferramenta de desconstrução, parece indicar, bem mais, uma tentativa de descentrar a imagem na constituição do regime representacional pós-moderno, ou ao menos: bagunçar seus efeitos, desmontar a continuidade entre imagem e verdade e, em última instância, liberar a imaginação de seu cativeiro na cultura visual contemporânea.
Evil.27: Selma (2011) é, das obras incluídas nesta Bienal, talvez a que melhor aborda os limites da visibilidade e a potência de processos coletivos não exclusivamente mediados por imagens. Ao discutir a subdocumentação das ações de Rosa Parks que levaram ao boicote dos ônibus de Montgomery (Alabama, EUA) contra a segregação racial nos anos 1950, Cokes não está interessado em discutir a invisibilidade da performance social negra, mas, precisamente, a importância de que, “como evento estruturante do boicote”, essas ações tenham operado como “material mítico não-visível” em vez de “evidências”. Ocorre que, ao escapar do regime de verificação visual definido pela gramática midiática, que tende a organizar aquilo que enxergamos como realidade, o gesto de recusa performado por Parks engendrou um processo de imaginação política impossível de ser circunscrito a uma imagem-ícone, e por isso mesmo capaz de se proliferar para além dos limites estabelecidos pelo campo representacional da época, de modo que “aqueles que produziram o boicote teriam se percebido continuamente surpresos por aquilo que estavam provocando”.
Contudo, não é apenas o domínio das imagens que o corpo de trabalho de Cokes busca desestabilizar, mas também o da música, especialmente a música pop e as tradições da música techno. Se filmes como Mikrohaus, or the black atlantic? (2006-08) e Evil.16: Torture Musik (2011) discutem mais objetivamente a relação entre música e poder – tanto do ponto de vista das subculturas techno-house (Mikrohaus) e seus elementos de apropriação e rearticulação da tradição sônica negra; quanto do ponto de vista da megaindústria do pop (Torture Musik), num brutal inventário dos usos de música popular estadunidense como ferramenta de tortura em contextos como o da Prisão Militar dos EUA em Guantánamo –, a interferência da música e de textos popularizados através da música é incontornável em praticamente todos os filmes apresentados.
Em Black Celebration (1988), por exemplo, ao substituir a locução das imagens de cobertura jornalística de que se apropria (basicamente, registros das rebeliões negras em Watts, Boston, Newark e Detroit, em agosto de 1965) por uma seleção de músicas da banda canadense Skinny Puppy, Cokes tanto interfere na narrativa oficial quanto às rebeliões (representadas hegemonicamente como “criminosas e irracionais” pelos dispositivos midiáticos de massa) com música industrial, quanto desloca o próprio fenômeno pop, compreendido como um emblema da cultura da mercadoria contra a qual as rebeliões de 1965 operam, subvertendo seu modo de inscrição na indústria cultural através de um reposicionamento crítico.
Finalmente, reconhecendo a impossibilidade de cobrir, num texto tão curto, a densidade conceitual e contextual da seleção de filmes de Cokes para a BB10, assim como a intensidade dos efeitos somático-políticos que a montagem proposta pelos curadores cria, insisto apenas em que incorporemos, como atitude crítica e horizonte ético, a mesma disposição apresentada pelo artista em levar ao limite o campo social da representação, reavaliando continuamente seus dispositivos sônicos, imagéticos e textuais a fim de distorcer as linguagens do poder em favor da imaginação, da revolta e da continuidade das nossas lutas por liberação.
Jota Mombaça é uma bicha não-binária, nascida e criada no Nordeste do Brasil, que escreve, performa e realiza estudos acadêmicos em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, estudos kuir, voltas decoloniais, interseccionalidade política, justica anticolonial, redistribuição da violência, ficções visionárias, o fim do mundo e tensões entre éticas, estéticas, arte e políticas nas produções de conhecimento do Sul do Sul Global.