O lugar é um porão escuro. Falta ar, o cheiro é forte e a poeira circula pelo ambiente abafado, intensificando a sensação de que estamos nos subterrâneos de alguma coisa. As obras de Tony Cokes na 10ª Bienal de Berlim estão dispostas no porão do ZK/U, em diversas TVs de tubo, estrategicamente posicionadas nos cantos da sala, além de uma projeção no centro onde uma seleção de dois vídeos (Black Celebration, 1988; e Mikrohaus, or the black atlantic?, 2006-08) passa em loop. A montagem reforça o ruído entre os vídeos e produz uma forte malha de sentidos sobrepostos, luzes que interferem umas nas outras, cores e textos que, envoltos pela atmosfera proposta pela montagem das obras (inteiramente formulada pela curadoria), clamam por procedimentos de leitura em que compreender não é tanto o foco quanto ser afetado. Se esses trabalhos afirmam uma posição profundamente implicada na produção de conhecimento teórico, eles criam também um consistente abalo epistêmico e performativo na concepção que temos acerca do que é um texto, e do que significa ler teoria.
Cokes é professor da cadeira Modern Culture and Media na Brown University (Providence, EUA), além de se mover por diversos circuitos de produção de arte contemporânea com sua obra audiovisual. Seu trabalho articula um arquivo inusitado, composto por estudos culturais, música pop e imagens históricas, e interroga, ao reposicionar criticamente os elementos desse arquivo, os modos como dispositivos midiáticos engendram o campo representacional a partir do qual tanto as formas do poder quanto das lutas por liberação frente ao poder se organizam. A intensa presença do texto como matéria de seus filmes, embora possa ser pensada simplesmente como uma hipervalorização da palavra enquanto ferramenta de desconstrução, parece indicar, bem mais, uma tentativa de descentrar a imagem na constituição do regime representacional pós-moderno, ou ao menos: bagunçar seus efeitos, desmontar a continuidade entre imagem e verdade e, em última instância, liberar a imaginação de seu cativeiro na cultura visual contemporânea.
Evil.27: Selma (2011) é, das obras incluídas nesta Bienal, talvez a que melhor aborda os limites da visibilidade e a potência de processos coletivos não exclusivamente mediados por imagens. Ao discutir a subdocumentação das ações de Rosa Parks que levaram ao boicote dos ônibus de Montgomery (Alabama, EUA) contra a segregação racial nos anos 1950, Cokes não está interessado em discutir a invisibilidade da performance social negra, mas, precisamente, a importância de que, “como evento estruturante do boicote”, essas ações tenham operado como “material mítico não-visível” em vez de “evidências”. Ocorre que, ao escapar do regime de verificação visual definido pela gramática midiática, que tende a organizar aquilo que enxergamos como realidade, o gesto de recusa performado por Parks engendrou um processo de imaginação política impossível de ser circunscrito a uma imagem-ícone, e por isso mesmo capaz de se proliferar para além dos limites estabelecidos pelo campo representacional da época, de modo que “aqueles que produziram o boicote teriam se percebido continuamente surpresos por aquilo que estavam provocando”.