Assentada em fundamentos das encruzilhadas de Exu, a exposição de Ismael David no Galpão Bela Maré, Rio de Janeiro, desafia sensibilidades e hierarquias sensoriais com trabalhos que exploram os sentidos além da visão. Utilizando elementos como cabaças e sons de atabaques misturados com Funk, David evoca a ancestralidade Afro-brasileira.
Ismael David, Série Senhor da Terceira Cabaça (detalhe), Cabaças, corda de polipropileno, contas tererês, 2024. Foto: Rony Gomes
Ismael David, Ruídos 2:Mukumbu, Alguidares e alto-falantes, 2024. Foto: Rony Gomes
O lugar de cruzamento entre ruas e caminhos figura um espaço limítrofe: a encruzilhada. Encruzilhada também é o nome de metáfora concreta de muito poder espiritual de intersecção, onde o desejo é obstinado e, ainda, é ofertado – lugar em que são feitas oferendas aos Exus nas religiões de matriz Afro-brasileira. Retomada de autonomia na simultaneidade entre ser e não ser, é momento de escolha para qual direção seguir. Antagônica ao significante da fronteira na sua função sociopolítica de ordenação e separação para restrição de circulação, a encruzilhada é fundamento ao movimento, lugar em que se desconfia de qualquer totalidade excessivamente evidente.
Ismael David, m'bolumbumba, Arame, cabaças, led, vergalhão e borracha, 2024. Foto: Rony Gomes
A excitação acústica das cabaças-xequerês presentes na maioria das obras, assim como nos berimbaus em m'bolumbumba (2024), nos fazem imaginar uma forma de conhecimento que não dependa das distâncias sistematizadas pelo olhar – como na figuração do excesso à subjugação pela diferença racial –, reinventando as nossas noções comuns de convivência.
Assentada em fundamentos da encruzilhada, a pesquisa artística de Ismael David lavra a linguagem por esses muitos sentidos da ambivalência, em investigações sobre os efeitos do tempo e da ancestralidade na diáspora Africana que assumem que tanto o que carregamos quanto o que nos guia é o mistério. Na cabaça estão todas as mirongas, título da primeira exposição individual de Ismael David no Galpão Bela Maré, nos introduz ao encontro com as muitas tramas em redes que se bifurcam e voltam a se encontrar para então sustentar corpos, cabaças, chifres, sonoridades, memórias. E também todo o desconhecido que decompõe as certezas de estigmas violentos sobre a diferença racial.
O Galpão faz parte de um dos maiores conjuntos de favela da cidade do Rio de Janeiro, Maré, localizada no norte da cidade, compreende, a uma população em torno de 140.000 habitantes, organizados em 17 comunidades. Situando as ações institucionais neste contexto territorial e político, a curadora Ana V tomou o corpo do público mais assíduo ao Galpão como ponto de partida para as suas escolhas curatoriais: as crianças da Maré. Desmantelando as condições em que apreendemos a sensibilidade, Ismael David desenvolve uma série de trabalhos pensando nos desejos e potenciais anti-pedagógicos no encontro da infância com obras de arte. As crianças são atraídas pelo toque, som, cheiro e gosto nas obras de David, encontrando a ludicidade de comer balas em Doçura ibejada (2024) ou o repouso em Iya Mi, a grande rede (2024). Desaprendemos o mundo como o conhecemos ao desierarquizar a visão em detrimento de outros sentidos, ao passo em que desfaz o binômio de prevalência da “mente” sobre o “corpo”. A excitação acústica das cabaças-xequerês presentes na maioria das obras, assim como nos berimbaus em m’bolumbumba (2024), nos fazem imaginar uma forma de conhecimento que não dependa das distâncias sistematizadas pelo olhar – como na figuração do excesso à subjugação pela diferença racial –, reinventando as nossas noções comuns de convivência.
Ismael David, Ruídos 2:Mukumbu" Alguidares e alto-falantes, 2024. Foto: Rony Gomes
Em Ruídos 2: Mukumbu (2024), origem etimológica da palavra Macumba, os sons de atabaques mixados no ritmo do Funk são emitidos de dentro de alguidares, recipientes comumente usados para as oferendas nas práticas do Candomblé, tradição religiosa Afro-brasileira. Na track feita em colaboração com o beatmaker Pedro Vidal Griot, David reitera que quando o “DJ solta o tamborzão” – típica frase dos MCs que inauguram a noite dos Bailes Funk dos anos 90 e início dos anos 2000 –, é anunciado que a gira vai começar, evocando o vínculo à espiritualidade Afro-brasileira. O artista afirma que seu primeiro contato com a ancestralidade africana, sobretudo em termos sonoros, foi a partir do Funk. Compondo a principal paisagem sonora do Rio de Janeiro, o ritmo é retumbante e insubmisso em habitar a experiência e imaginário de todos os corpos, sobretudo nos subúrbios e favelas, regiões onde foi historicamente concentrada a maior parte da população Negra em um longo processo de ressocialização pelas margens após o período de escravização.
Movido pela afetabilidade em não reduzir a complexidade da matéria em uma ordem formal, Ismael David performa Lá vem o Senhor e a Senhora (2024), remissiva ao Itan de Exu como Senhor da Terceira Cabaça. Nesse Itan (ou relato mítico da cultura iorubá), a Exu é dada a escolha entre duas cabaças para levar em viagem ao mercado de Ifé: uma contendo o Bem e a outra contendo o Mal. De imediato, comanda que seja providenciada uma terceira cabaça, na qual mistura os dois elementos e faz do conteúdo deste terceiro recipiente a substância para reger a dimensão relacional do mundo, estabelecendo um parâmetro onto-epistemológico outro. Em sua pesquisa com a luz, a opacidade e o corpo no espaço para a performance, o artista produz vestimentas pretas com pontos riscados em pemba em colaboração com sua companheira Patricia David, imaginando que a escuridão da noite pode oferecer respostas porque não encerra as perguntas. Unidos por um elo com uma cabaça em cada extremidade, os performers vestem máscaras de espelhos que diluem as noções de alteridade ao visualizar os rostos das pessoas presentes refletidos no corpo em ação. O lugar da diferença deixa de significar interdito para se tornar zona de contato, tropo dialógico, quimera recombinante.
Ismael David, Lá vem o senhor e a senhora, performance, figurino Patrícia David. Saia e máscara Oxford, pemba e espelho, 2024. Foto: Rony Gomes
O lugar da diferença deixa de significar interdito para se tornar zona de contato, tropo dialógico, quimera recombinante.
Orientado por esse princípio, o trabalho de David revisa, atualiza e elabora uma cena ética em que a matéria é posicionada para além da equação de valor, sendo erigida pelo contágio, pela subtração da separabilidade, pelo mistério do desconhecido. Para reinventar as formas vigentes da vida em comum, a encruzilhada de Exu presentificada por David se apresenta como chave abolicionista ao fim do mundo como o conhecemos, para irmos de encontro a um mundo implicado e emaranhado em dimensões outras, visíveis e invisíveis, de vidas humanas e mais que humanas profundamente interligadas.
Ismael David (1988, Madureira, Rio de Janeiro) é artista visual e professor de artes visuais graduado pela universidade do estado do Rio de Janeiro. Realizou cursos livres na escola de artes visuais do Parque Lage e participou do programa de fundamentação artística e desenvolveu trabalhos na área de arte educação em museus, centros culturais e Ongs. Atualmente trabalha sua ancestralidade africana e afro-brasileira desenvolvendo uma pesquisa teórico-prática sobre “processos” ancestrais e o “fazer” contemporâneo.
Matheus Morani (1997, Nilópolis) é pesquisador de práticas curatoriais, educacionais e artísticas que envolvem abordagens não hegemônicas do conhecimento. Atualmente, Morani é curador assistente no Solar dos Abacaxis (Rio de Janeiro, Brasil).
Referências bibliográficas: SILVA, Denise Fereira da & OTOCH, Janaina Notaga. (2019). Em estado bruto. ARS (São Paulo), MBEMBE, Achille. A ideia de um mundo sem fronteiras. Revista Serrote, maio de 2019.