A exposição itinerante Lumières d’Afriques faz uma parada em Joanesburgo em meio à pandemia global e à incerteza generalizada. Com foco no complexo tema do desenvolvimento na África – incluindo acesso à energia –, a exposição exibe uma visão crítica do presente ao mesmo tempo em que incita reflexões sobre a construção de futuros inclusivos.
Emeka Okereke, Light Switch, 2015. Impresso em papel fotográfico Canson rag 40 x 60 cm © Emeka Okereke
Cyrus Nganga Kabiru, Alternative/Solution, 2015. Escultura de metal (bicicleta) 130 x 140 cm © Mathieu Lombard
Aston, Weziza. 2015. Atlas mundial e itens coletados 120 x 120 cm © Mathieu Lombard
A Galeria Standard Bank em Joanesburgo está assustadoramente vazia enquanto faço um tour por Lumières d’Afriques em abril deste ano. Minha visita virtual acontece durante a pandemia de Covid-19. Estou na África do Sul, onde – como em muitos outros países – foi imposto um rigoroso lockdown para diminuir a disseminação do vírus mortal. À medida que a pandemia se espalha e exacerba a desigualdade, apelos crescentes por mudanças radicais políticas e das estruturas de poder aumentam a urgência das questões com as quais a exposição está envolvida.
Com a temática “As luzes das Áfricas”, Lumières d’Afriques apresenta 54 artistas, um de cada país do continente. Inclui pintura, instalação, fotografia, tapeçaria e assemblage. A direção artística está a cargo do curador francês Jean-Michel Champault e uma equipe administrativa composta por pessoas de diferentes áreas e países. De acordo com o site da mostra, Lumières d’Afriques busca refletir sobre questões de desenvolvimento e acesso à energia no continente.
O atual momento de catástrofe – em que a “crise em função de commodities de combustíveis fósseis” e o aumento da escassez de alimentos desencadeado pela pandemia, bem como a intensificação da violência estatal, são algumas das muitas questões que continuam a suscitar alarme ‒ pede uma leitura atualizada dos trabalhos artísticos e dos ambientes que os cercam.
A organização African Artists for Development (AAD, Artistas Africanos pelo Desenvolvimento) baseada em Paris, iniciou a exposição em 2015 e diz que a mostra é “guiada pela convicção de que o desenvolvimento da África e a proteção climática podem se encaixar harmoniosamente”. Ela afirma também que “a arte contemporânea pode adicionar um pouco de alma ao crescimento do continente”. Enquanto a organização aponta uma convicção a respeito de uma abordagem cruzada do desenvolvimento no continente astutamente ciente do meio ambiente, o sentimento de que a arte contemporânea pode “adicionar um pouco de alma” parece diminuir o papel da arte enquanto catalisadora de inovação e participante no discurso relacionado ao desenvolvimento.
Paa Joe, Electric Bulb, 2015. Escultura de madeira, 230 x 110 x 120 cm © Mathieu Lombard
Entre as obras de arte na galeria, me deparei com a recorrente imagem de uma lâmpada ‒ uma representação comum de eletricidade e uma reflexão indiscutivelmente óbvia sobre o tema. Contudo, a leitura próxima de alguns dos trabalhos complica as noções de energia. A escultura de Paa Joe intitulada Electric Bulb (2015) se parece com um caixão de tampo aberto revelando um revestimento de cetim roxo e amarelo que constitui a forma de uma lâmpada. A estrutura segue a tradição de um caixão de fantasia, ou abebuu adekai, geralmente usado para enterrar os mortos em certas comunidades de Gana, além de fazer parte de uma paisagem cultural visual mais ampla. Electric Bulb pode ser lida como uma metáfora do luto espalhado por toda parte durante a pandemia, enquanto conecta a energia à morte ou até mesmo à escuridão.
Doung Anwar Jahangeer, BlackLight – WhiteCoal, 2015. Lâmpada Philips 100 watts, 240volts, carvão triturado da mineradora sul-africana Richard Bay. Dimensões variadas © Mathieu Lombard
Amplificando as tensões emitidas por Electric Bulb, temos BlackLight – WhiteCoal (2015), de Doung Anwar Jahangeer: uma só lâmpada incandescente montada na parede da galeria. A lâmpada de cor cinza, com sua luminosidade em contraste à escuridão, carrega numerosas ressonâncias e permanece como uma representação paradoxal de um continente onde a escassez de energia significa que milhões de pessoas não têm acesso à eletricidade. (Em vídeo, Nolan Oswald Dennis também discute sua obra em Lumières d’Afriques em termos da exploração da “relação entre luz e escuridão”.) Em um videoclipe colocado ao lado de BlackLight – WhiteCoal, Jahangeer fala da energia com sendo uma faca de dois gumes: “ela pode impulsionar o crescimento e o desenvolvimento”, mas é “um recurso que também nos desumaniza”. O trabalho de Jahangeer aponta tanto para o valor da energia por proporcionar padrões de vida significativos quanto para práticas de exploração em torno dos recursos naturais como o carvão, um combustível fóssil que danifica o meio ambiente e aqueles que trabalham na mineração.
A obra de Cyrus Nganga Kabiru Alternative/Solution (2015) é uma engenhoca entrelaçada feita de objetos achados e propõe ideias interessantes sobre energia eólica, sustentabilidade, reciclagem e inovação. Série The Next Future (2015), um díptico fotográfico de René Tavares, mostra dois jovens de pé sobre um monte de lixo, evocando indagações sobre aterros e poluição, e seus efeitos no longo prazo para o meio ambiente e gerações futuras.
Investigando de perto, Lumières d’Afriques reconfirma para mim que a arte contemporânea pode fazer mais que “adicionar um pouco de alma ao crescimento do continente”. Os trabalhos ampliam a ação e estimulam um discurso diferenciado sobre o desenvolvimento na África e o que ele significa para o meio ambiente e para as pessoas em todo o continente.
Lumières d’Afriques foi inaugurada em Paris em 2015, antes da Cúpula do Clima realizada naquela cidade, e viajou desde então por alguns países europeus e africanos, incluindo Senegal e Etiópia. Sua versão em Joanesburgo coincide com o 60º aniversário do “Ano da África”, que o professor e teórico literário-cultural Cedric Tolliver descreve como: “Uma frase criada para marcar o ano em que 17 países africanos declararam sua independência dos Estados coloniais europeus”.
Nathalie Mba Bikoro, Future Monuments, 2015. Fotografia em caixa de luz, 120 x 81,5 cm © Mathieu Lombard
Já que está acontecendo durante um momento de reflexão sobre histórias de liberação da África, deveríamos examinar a ruminação de Lumières d’Afriques sobre o passado. Entre as obras de arte que invocam a história para complicar a compreensão do presente inclui-se Future Monuments (2015), de Nathalie Mba Bikoro. A fotografia de Bikoro mostra uma pessoa segurando uma agulha e linha ligada a pontos que costuram uma ferida na parte superior do braço da qual escorre sangue. A laceração deixa exposto um pedaço de pano estampado que se assemelha a tecido de cera impresso. A cena pode ser lida de inúmeras maneiras. Por um viés mais óbvio, ela aponta para histórias coloniais de materiais têxteis e como elas foram recuperadas e remodeladas por várias comunidades na África. Por outro lado, o ferimento sangrento da pessoa na foto alude a como legados de violência se fazem presentes nos dias de hoje e incitam processos de cura coletiva.
Enquanto a comunicação em torno de Lumières d’Afriques e a experiência como exposição virtual ressaltam os 54 artistas, os conceitos de fronteira e “representação” geográfica permanecem superficiais na mostra. Em tempos de uma urgente reimaginação sociopolítica e econômica desencadeada pela Covid-19 e recorrentes conversas sobre decolonialidade, divisões geográficas rígidas são desestabilizadas por algumas obras de arte. Weziza (2015), de Aston, mostra um mapa-múndi com a África em seu centro e inúmeros fios de lã delineando regiões e conectando pontos territoriais. Weziza quebra linhas coloniais destinadas ao controle para articular em vez disso uma interconectividade de pessoas e espaços. A gravura Der südliche gestirnte Himmel vs Planiglob der Antipoden (O céu meridional estrelado vs. planiglobo dos antípodas, 2015), de Malala Andrialavidrazana, mostra parte do mapa emaranhado com imagens de notas de dinheiro e ilustrações que parecem desenhos provenientes de arquivos. O trabalho de Andrialavidrazana costura histórias dominantes sobre comércio com sistemas de conhecimento indígena a fim de criar uma nova narrativa subversiva.
Malala Andrialavidrazana, Der sudliche gestirnte Himmel vs Planiglob der Antipoden, 2015. Impressão em papel Hahnemühle. Photo Rag Ultra Smooth, 120 x 120 cm © Malala Andrialavidrazana
Conforme a incerteza lança sua sombra sobre o amanhã, a pandemia global não apenas expôs sociedades injustas como também provocou uma necessidade de mudança no mundo como o conhecemos. Lumières d’Afriques, uma exposição de alcance ambicioso, acena para uma análise crítica e diferenciada de como o desenvolvimento é sentido e aparenta ser em toda a África. Ao mesmo tempo em que as obras de arte da mostra ‒ que evidenciam a ação e muitas questões emergentes sobre dinâmicas de poder criadas por estruturas institucionais, políticas e de ajuda internacional ‒ impulsionam o pensamento sobre maneiras pelas quais práticas que sejam conscientes do clima e que centralizem pessoas marginalizadas são cruciais na formação de ambientes inclusivos em toda África.
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Stefanie Jason escreve sobre culturas visuais e completou recentemente seu MA em Prática Curatorial na Wits University, antes de ingressar no programa de PhD em História da Arte na Rutgers University no segundo semestre de 2019.
Traduzido do inglês por Raphael Daibert.