O garoto que nasceu em 1990 calçou os “inline” pela primeira vez aos 14 anos, se tornou profissional de “street” a seguir e fez dos patins o primeiro pincel de uma carreira meteórica. Em apenas quatro anos, seu trabalho como artista já tinha se tornado conhecido no mundo. Em uma tarde de verão carioca, Maxwell Alexandre recapitulou as estações de sua trajetória em conversa com a C& América Latina.
Pintei o Éden de preto, 2020. Foto: Cortesia Galeria David Zwirner.
Close a door to open a window, 2020 (detalhe). Foto: Cortesia Galeria David Zwirner
I saw things I imagined, 2020. Foto: Cortesia da galeria David Zwirner
Dos patins aos museus
Sempre desenhei, mas no ambiente da favela, artista era o ator da novela de TV. Em 2011, ingressei no curso de Design e Comunicação Visual. Queria me profissionalizar para fomentar a cultura dos patins street. Mas o curso revelou muito mais do que o desenho industrial e tive consciência do que era ser um artista plástico. A partir desse afloramento, consegui olhar retroativamente e designar como arte muito do que eu vinha fazendo, como os trabalhos com vídeo e fotografia que fazia para impulsionar minha carreira de patinador. Patinar também já era um fazer artístico.
Dos becos da favela aos corredores da elite
Estudei com bolsa integral na PUC-Rio, universidade de elite. Eu era o único negro na sala de aula na maioria das vezes. Claro que o nosso corpo, a nossa presença, altera o ambiente e traz sentimentos e respostas, mas durante a faculdade eu não refletia muito sobre essas questões, os debates identitários não estavam aquecidos ainda. Foi durante a faculdade que eu realmente me reconheci e me aceitei como negro e passei a sentir um orgulho imenso de minha comunidade. Com o fim da graduação em 2016, iniciei um processo de repatriação. Comecei a andar descalço como uma maneira de acelerar essa minha volta à pátria, à Rocinha, tentei mudar minha rotina novamente para me readaptar, ia pro baile, jogava futebol com meus amigos de infância, mas era constrangedor, porque todos percebiam que eu já não era mais o mesmo. Para piorar, não tinha perspectiva de futuro e ao mesmo tempo me desagradava a ideia de emprego formal. A cobrança era grande dentro de casa. Sobretudo porque eu fazia arte abstrata, passava o dia rabiscando folhas, imagine: com quase 30 anos e rabiscando folha, na favela! A expectativa era: uma vez formado, agora vai evoluir. Mas entrei como designer e saí artista! Para as pessoas, eu era um vagabundo. Sempre fui muito focado, estava comprometido com a minha pesquisa artística e arrisquei.
O jogo virou rápido
Meu ateliê também fica na Rocinha. Quando pintei pela primeira vez os personagens com camisa da rede pública de ensino (2017), pensei: “Fodeu, vou estourar!” Porque havia uma demanda, um cenário crescente das minorias reivindicando seus espaços, uma onda ascendente de artistas negros autorretratando o que é ser preto. Os mercados fagocitam tudo e eu estava atento, surfando essa mesma onda. Eu tinha um ícone, o uniforme que está nas ruas da cidade e todo mundo reconhece. Mas trazê-lo para a tela muda tudo. É potente, eu sabia disso e sabia que estava criando um lugar de exclusividade, já que tinha o lugar de fala. Não dá mais para alguém de fora, dominando os códigos da arte contemporânea, se instalar na periferia, falar e realizar trabalhos sobre essa periferia. Para esse movimento ser legítimo, precisaríamos de alguém da periferia que dominasse os códigos da arte contemporânea, voltasse para a periferia e desenvolvesse para o mundo uma poesia dentro desses códigos de sofisticação poética que a arte contemporânea nos dá. E eu tinha repertório para representar esse conteúdo em forma de pintura, dentro dos códigos da arte contemporânea. Esse era o meu lugar de exclusividade.
Referências
Raros são os pintores pretos retratando personagens pretos. As minhas referências eram o norte-americano Kerry James Marshall e, aqui no Rio, o Arjan Martins. Sem esses mestres, teríamos pretos pintando brancos. O processo é muito doido, mano, e na arte fica mais evidente. Mesmo sendo preto, tendo a vivência do preto, a paleta do artista vai ser ocre, rosinha. O Kerry James Marshall pinta pretos desde os anos 1990. Ele tinha uma referência, o Charles White (1918-1979). Mas sem uma referência… Agora parece simples, abro a internet e vejo pessoas pintando personagens pretos, inclusive pintores brancos estão escurecendo a sua paleta. Mas o quão difícil foi para os primeiros caras, eles deviam pensar: por que estou pintando personagens brancos? Hoje temos o Mulambö, o No Martins, vários artistas que já iniciam a carreira retratando personagens pretos, independente de estarem em condição de subalternidade ou não. Não temos grandes mestres pretos reconhecidos, porque a pintura é uma atividade do privilégio, vadia. Onde estavam os mestres pretos? Trabalhando duro.
A narrativa do “Pardo é papel”
A série “Pardo é papel” iniciou sua itinerância em 2019, na França. Forma e conteúdo se completam com coerência precisa. Os personagens são pretos. E o papel é o pardo, cor que já foi muito usada em documentos de identidade para velar a negritude. Isso coincide com a tomada de consciência da comunidade preta em relação a si mesma. Num primeiro momento, essa união não foi pensada. Nos primeiros autorretratos que pintei, usando sobras de papel pardo do laboratório de moda da PUC, a ideia era puramente estética: criar um universo no qual os personagens fossem pretos com cabelos louros, como os meus, descoloridos desde 2012. E o background amarelo do papel resulta numa resposta muito apelativa esteticamente. No terceiro desenho, eu me liguei que estava pintando corpos pretos sobre papel pardo e lembrei da máxima dos movimentos negros: “pardo é papel”. Fechei conceito de cara! Nessa mesma época, estava pintando a série “Reprovados”, análoga à “Pardo é papel”. Mas “Reprovados” fala de mazelas, da dizimação da população preta. O motivo principal é a camisa da rede pública municipal de ensino. Já “Pardo é papel” é sobre pretos marrentos ostentando na vitória, na bonança. Queria lançar primeiro a “Pardo é papel”, porque não queria começar falando de mazelas, queria falar de glória. Pois a vitória não é mais tão especulativa assim, temos a cultura hip hop, de onde saem vários pretos empoderados, ricos. E isso vai mudando o nosso imaginário em relação ao povo preto. Penso que essa é a maior contribuição que nós, autores pretos, podemos trazer, ou seja, retratar a realidade de que há um futuro especulativo de vitória, de ascensão, mudando o imaginário de subalternidade.
Os suportes
Tem gente que fala: “pinta em tela!” Mas pinto em tela muito antes do papel. Quando escolho pintar com graxa no papel pardo, não estou pensando na graxa como material que pode falar sobre as narrativas que estou pintando. Na real, a graxa foi o material que usava quando servi no Exército, então existe uma memória em relação a ele. Mas sobretudo porque é um material acessível. Quando comecei a minha prática de pintura, não tinha grana para comprar tinta. Usava materiais mais acessíveis. O henê e a graxa vêm desse lugar. Uso muito pigmento puro. Corante é muito barato, custa dois reais. Tinta de parede fajuta, gasto 20 reais apenas e tenho um resultado poroso e fosco, que gosto muito. Lá no início, as decisões passavam pela necessidade. Depois, com a repetição dos materiais, acabaram virando conceituais. Em termos de suporte, vou trabalhando com o que vai aparecendo. Tenho muito trabalho em foto, em vídeo, performance… O que acontece é que “Pardo é papel” foi o trabalho que estourou, e a minha carreira é recente.
Maxwell Alexandre. Foto: Vitória Proença
O futuro
Tenho uma mitologia própria e essa mitologia tem a pintura como coluna cervical – e ela representa mais de 50% do mercado, até em termos comerciais. Na real, nem me considero pintor. A pintura está na minha prática como a escrita está. A pintura são anotações que eu faço.
A exposição individual “Pardo é papel”, de Maxwell Alexandre, no Museu de Arte do Rio (MAR) pode ser visitada virtualmente aqui.
Anna Azevedo é jornalista, artista e cineasta interessada na interseção entre cinema e artes visuais.