Bienais de São Paulo

“Mais desejo de se igualar ao Norte do que de redefini-lo”

Autora de dissertação sobre a participação africana nas primeiras seis edições da Bienal de São Paulo, a curadora e pesquisadora Luciara Ribeiro fala sobre a importância de olhar para os arquivos e suas lacunas, a fim de pensar contranarrativas artísticas e revisões históricas que questionem a colonização do pensamento.

C&AL: Na América Latina e do Sul, a criação de bienais que propunham uma alternativa ao discurso cultural hegemônico do Hemisfério Norte já era um processo que acontecia desde os anos 1960, mas, no Brasil, isso se deu mais tardiamente. Por que a Bienal de São Paulo não buscou se apresentar em uma perspectiva ideológica como uma bienal do Sul?

LR: Essa foi uma questão que rondou minha pesquisa. O que houve com a Bienal de São Paulo, que a fez manter o olhar mais ao Norte que ao Sul? Penso que tem uma relação com o processo social, racial e artístico brasileiro. Mesmo que a Bienal de São Paulo fosse em um território do Sul, sua organização foi realizada a partir das escolhas de uma elite artística paulistana que se entendia mais próxima da Europa do que de um Sul geopolítico. Isso revela as desigualdades brasileiras. Se olharmos para a história da Bienal de São Paulo, veremos que ela nunca teve uma curadoria geral de autoria negra ou indígena, seja de brasileiros ou estrangeiros. Em suas edições, artistas não-brancos sempre foram minorias. Esses dados revelam que a Bienal, enquanto exposição, se democratizou apenas na gratuidade do ingresso e não realizou uma mudança estrutural que visasse a redefinição dos seus critérios organizacionais na base. Acredito que se houver essa mudança de postura, a perspectiva ideológica que ainda está pautada por certo eurocentrismo e branquitude seriam alterados e interferiria no modo como a Bienal olha para o Sul.

C&AL: Um ponto interessante que você traz é sobre o convite feito ao Egito e à África do Sul (na época União Sul-Africana) para a primeira Bienal, apontando esse interesse possivelmente ao fato de ambos já serem independentes e por serem os primeiros países do continente a terem uma Escola de Belas Artes, que seguia modelos de ensino europeu. O que isso revela sobre o interesse no Brasil por esses países naquele período?

LR: Em 1950, ano em que Ciccillo Matarazzo começou a organizar a primeira Bienal, apenas quatro países africanos eram independentes: África do Sul, Egito, Etiópia e Libéria. Desses, apenas a África do Sul e Egito possuíam escritórios diplomáticos no Brasil – e como a Bienal era intermediada pelo Ministério das Relações Exteriores, apenas os dois países foram convidados. A meu ver, o interesse do Brasil pelos dois países era sobretudo o de criar vínculos econômicos. Nesse processo, algumas questões ideológicas e políticas, aparentemente, se contrapunham. No caso da África do Sul, que já estava sob o regime oficial do Apartheid, o Brasil continuou sendo um dos seus principais parceiros, mesmo aqui prevalecendo oficialmente a defesa pela democracia racial. A relação com os dois países, por parte da Bienal de São Paulo, também foi marcada por relações com a população étnico-racial branca e de origem europeia, característica que também marca as elites artísticas brasileiras. Porém, cabe mencionar que o aceite desses países não se deu de primeira. O anúncio da participação do Egito como primeiro país africano durante a segunda Bienal de São Paulo revelou certa preocupação e receio por parte de Matarazzo de que as obras provindas de tal país fossem, nas palavras dele, “verdadeiramente modernas”. Apenas após uma ida de Mário Pedrosa ao país Matarazzo pareceu sentir confiança em aceitá-las. Isso revela que, mesmo ambos países terem sido convidados, o fato de estarem fora do território europeu e estadunidense era motivo para desconfiança acerca do valor artístico de suas obras.

C&AL: No capítulo sobre a 6ª Bienal (1961), você destaca que a atuação de Mario Pedrosa como diretor foi importante para a participação da Nigéria e da Costa do Marfim, ao mesmo tempo em que aponta uma visão essencialista do crítico sobre esses países quando ele define sua arte como “de culturas menos polidas.” O que esse olhar revela sobre a leitura dessas culturas mesmo entre pensadores atentos à democratização da arte como ele?

LR: Pedrosa foi um grande crítico, pesquisador e gestor das artes que demonstrou sua preocupação e engajamento em tornar as artes um campo mais participativo. Entretanto, fazer essa crítica a ele é um exercício que nos auxilia a rever a história para não reproduzirmos ideologias e valores que não coincidem mais com o momento. Por exemplo, o discurso de Pedrosa na 6ª Bienal revela um pensamento hierárquico, evolucionista e primitivista direcionado às produções africanas. Esse modelo de pensamento não pode mais ser tolerado e nem reproduzido na atualidade. Rever criticamente agentes como Pedrosa contribui para a formação de um campo de pesquisa mais rigoroso, engajado e atento.

C&AL: De que maneira você acha que sua pesquisa reverbera atualmente, tendo em vista o Black Lives Matter e outros movimentos de decolonização institucional?

LR: Acredito que a minha pesquisa traz contribuições relevantes para que olhemos e ativemos os arquivos das artes. É necessário que façamos perguntas a eles, vejamos suas lacunas, pensemos novas estratégias de como contar narrativas para as artes. A pesquisa é uma contribuição, mas a mudança real só virá quando todos se comprometerem. Tanto as instituições (museus, galerias, universidades), quanto os agentes (curadores, gestores culturais, críticos, historiadores de arte) precisam rever suas políticas, suas escolhas, suas classes, suas racialidades, seus gêneros, suas territorialidades etc. Se não houver esse empenho, nunca quebraremos o ciclo vicioso da exclusão e da colonização.

Leia mais sobre Luciara Ribeiro.

Nathalia Lavigne é jornalista, pesquisadora e curadora, mestre em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela Birkbeck, University of London, e doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP).

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