Manifestações afro-brasileiras

Mostra “Territórios”

Exposição procura destacar a importância dos artistas afrodescendentes na história da arte brasileira.

Além destes dois pintores, também outros se distribuem pelas salas organizadas sob três eixos: matrizes europeias, matrizes africanas e matrizes contemporâneas. Firmino comparece na primeira matriz com o quadro Bandeira do divino (1884), que faz corpo com os bronzes Ninfa Eco e Caçador Narciso (1785), de Mestre Valentim (1745-1813), primeiras peças fundidas no país; as aquarelas de Miguelzinho Dutra (1810-1875), cujo tema é a paisagem e a ocupação urbana de territórios do interior do estado de São Paulo; as paisagens, alegorias e retratos a óleo dos irmãos Arthur (1882-1923) e João Timótheo da Costa (1879-1930).

Essa primeira matriz se complementa, de certo modo, com a sala matrizes africanas, na qual são exibidos os trabalhos de Emanoel Araújo, Edval Ramosa, Rubem Valentim (1922-1991). Estes artistas manteriam de modo relativamente explícito um “lastro cultural africano, ou afro-brasileiro”, para usar uma expressão de Clarival do Prado Valladares, autor fundamental no debate sobre a produção artística negra brasileira.(2) É possível perguntar-nos de que África(s) se está falando ao posicioná-los neste segmento? E a relação dos outros com as Áfricas, se existe, qual é?

A estas duas salas acrescente-se matrizes contemporâneas: composta por obras recentemente adquiridas para o acervo entre 2012 e 2015, entre as quais trabalhos que olham para a história pregressa do país, como Parede da memória, de Rosana Paulino, Incômodo, de Sidney Amaral, e Êxodo, de Jaime Lauriano; ou que olham para a relação entre corpo e espaço público, como Estrutura Dissipativa/Gangorra, de Rommulo Vieira Conceição, além das obras de Flávio Cerqueira e Paulo Nazareth. Embora essas separações em matrizes faça sentido, há uma interpenetração intencional entre as salas que apontam para outras conexões entre as obras, estimulando a imaginação curatorial do público visitante.

Ao visitar Territórios, e ciente da importância de uma exposição com esta temática, fica um enorme desejo de ver outros artistas com mais ou menos lastro africano ou afro-brasileiro incorporados ao espaço privilegiado do acervo, podendo circular em exposições dentro e fora do país, motivar pesquisas acadêmicas, serem debatidos em encontros com o público, como o fez o serviço educativo da instituição e o seminário temático de dois dias. (3) Adicionalmente também motiva a pensar arranjos críticos que permitam articular produtores e obras a debates mais amplos no interior do próprio acervo, permitindo interlocuções entre estas obras e outras de procedência e mãos diversas afro-brasileiras, afro-americanas, afro-europeias e quem sabe até arte africana contemporânea.

Fato público

É “fato público” que a Pinacoteca do Estado tem grande interesse, até em função do momento de sua fundação em 1905, por artistas brasileiros de origem europeia e pela produção de feitio acadêmico. Menos conhecida, porém é a presença negra em seu acervo desde 1956, quando é doado o autorretrato do carioca Arthur Timóteo, momento no qual o racismo em São Paulo barrava a integração dos negros na cena cultural paulistana em diferentes linguagens: teatro, cinema, artes visuais, literatura, música. O TEN-SP – Teatro Experimental do Negro de São Paulo, atuante desde 1948 – era um dos meios pelos quais pessoas negras buscavam fugir à discriminação. Nesse campo, porém, iria “encontrá-la odiosa”.(4) No seu acervo é possível notar também a presença de mulheres, antecipando uma demanda social que só agora começa a ser melhor atendida. Entre suas muitas artistas estão: Georgina de Albuquerque, Anita Malfati, Djanira da Motta e Silva, Maria Lídia Magliani, esta última presente em Territórios.

Com a gestão de Emanuel Araújo, diretor do Museu Afro Brasil, é que a Pinacoteca adquire por meio de sua associação de amigos, criada em 1992, uma quantidade significativa de obras de artistas afro-brasileiros, entre os quais Mestre Valentim, Edval Ramosa, Estevão Silva e outros, diversificando sua reserva técnica. Mesmo antes de Araújo, e pouco depois do autorretrato de Artur, obras desse segmento artístico foram sendo incorporadas, segundo consta no catálogo digital do acervo artístico: artistas como Otávio Araújo (entre 1972 e 2014), Genilson Soares (1980), Waldomiro de Deus (1982). Gigantes e pigmeus, de Benedito José Tobias (1894-1944), foi adquirida em 2009 com recursos doados pelos visitantes do Museu. O acervo que iniciou o século 20 com apenas 26 obras tem hoje só de Tobias 15 obras, de Valentim 28, Antonio Bandeira 3, Otávio Araújo 37, Emanoel Araújo 33 (5), entre outros. Para Tadeu Chiarelli, em entrevista concedida à revista Cult, a intenção é que a instituição “ganhe certo protagonismo na vasta agenda da diversidade nas artes do país”.(6)

Intenção acertadíssima, posto já haver momentos de inclinação institucional de valorização do diverso. Considero, contudo, que o termo afrodescendente poderia ser substituído por afro-brasileiro, restituindo a estes artistas nacionais a pertença integral ao território Brasil.

 

Alexandre Araujo Bispo é antropólogo, crítico, curador independente e educador.

 

(1) O quadro do Sr. Firmino Monteiro. In: Negro de Corpo e Alma. Mostra do Redescobrimento. Nelson Aguilar (org.) Fundação Bienal de São Paulo. São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000: p.336

(2) O Negro brasileiro nas artes plásticas. In: Negro de Corpo e Alma. Mostra do Redescobrimento. Nelson Aguilar (org.) Fundação Bienal de São Paulo. São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000: p426-432.

(3) A formação de professores aconteceu no dia 16/04/2016 com distribuição de material de apoio. O Seminário realizado em parceria com a revista Omenelick 2º Ato aconteceu nos dias 30/04 e 07/05 de 2016.

(4) Jornal Ultima Hora. Ano 1, São Paulo 13 de Junho de 1952, nº 74. Arquivo pessoal Nery Rezende da Silva.

(5) Dados extraídos do acervo online organizado em ordem alfabética: http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca-pt/default.aspx?c=acervo&mn=545&friendly=acervo-artistico. Acesso em 11/03/2016

(6) Protagonismo negro sobre tela. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2016/02/protagonismo-negro-sobre-tela/

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