Não é por acaso que Eustáquio Neves mora e trabalha na rua Arthur Bispo do Rosário, na cidade de Diamantina, interior de Minas Gerais. Há sete anos ele e a esposa, a historiadora Lilian Oliveira Neves, tiveram a ideia de dar à pequena via o nome de um dos maiores artistas visuais brasileiros, que passou parte da vida como interno de um hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro. “Após ver uma exposição de Bispo do Rosário [1909-1989] no início dos anos 1990, percebi que não precisava ter pudor em transgredir”, conta o fotógrafo mineiro.
Desde então, Neves começou a manipular negativos, espécie de marca registrada da carreira iniciada em 1992, com Caos Urbano. Já naquele ensaio, onde retrata uma comunidade sem-teto na periferia de Belo Horizonte, nota-se também outro ponto crucial em sua produção: o lugar do negro dentro da sociedade brasileira. “Vivemos quase quatro séculos como escravos no Brasil, mas até hoje, 129 anos após a abolição da escravatura, continuamos invisíveis para uma grande maioria branca que parece acreditar que o país foi feito exclusivamente para ela”, constata.
Essa preocupação também está presente em seu mais recente trabalho, Valongo: Cartas ao Mar (2015-2016), inspirado na história do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. O local, que recebeu entre 500 mil e 900 mil africanos escravizados entre os séculos 18 e 19, ganhou em julho passado o título de Patrimônio Mundial da Unesco. Desde então, passou a ser considerado um “lugar de memória”, a exemplo de Auschwitz e Hiroshima. “É fundamental lembrar para não esquecer: a história de Valongo faz parte da história de todos os afrodescendentes do Brasil”, acentua Neves.
C& América Latina: Como surgiu a ideia do ensaio Valongo: Cartas ao mar?
Eustáquio Neves: Esse ensaio foi encomendado em 2015 pelo antropólogo e fotógrafo Milton Guran, diretor do FotoRio [Encontro Internacional de Fotografia do Rio de Janeiro], que na época participava do comitê técnico da candidatura do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo a Patrimônio Mundial. A ideia do ensaio, que foi exposto pela primeira vez no FotoRio, em 2016, remete à prática de lançar ao mar cartas dentro de garrafas: são mensagens para que as pessoas nunca se esqueçam e sempre reflitam sobre a tragédia da escravidão. Além de memória, as imagens também falam sobre a morte.
A região de Valongo não era apenas uma porta de entrada, mas também um cemitério onde eram jogados em vala comum os corpos dos africanos que chegavam mortos após a longa e insalubre travessia de navio entre a África e o Brasil. Agora acontece a morte da memória do lugar: com a atual revitalização, muitas delas vão ser sepultadas por alguns projetos que são bastante higienistas.
C&AL: O Cais do Valongo foi construído em 1811, aterrado por décadas e reencontrado durante escavações feitas durante as obras de revitalização da Zona Portuária do Rio de Janeiro, iniciadas pela prefeitura carioca em 2011 com vistas aos Jogos Olímpicos de 2016. Como você vê desse processo de revitalização?
EN: Acho que existe ali uma grande contradição. Se, por um lado, essa revitalização atrai visitantes para uma área outrora abandonada pelo poder público, por outro acaba repetindo uma opressão do passado. Isso porque a grande maioria dos moradores da região são pessoas simples, de baixo poder aquisitivo, e o custo de vida local aumentou muito desde então, a exemplo do valor dos alugueis. Ou seja, a revitalização se tornou um processo excludente.