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35ª Bienal de São Paulo: coreografando novos movimentos poéticos para as artes

Intitulada Coreografias do Impossível, a 35ª Bienal de São Paulo é uma edição histórica que desafia conceitos tradicionais. Com curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, a exposição destaca uma polifonia de posições artísticas, que abordam questões desde a arquitetura do pavilhão até as relações entre obra e público.

Desafiando o vão e a arquitetura niemeyeriana

Considerado um dos principais símbolos do modernismo brasileiro, o pavilhão Ciccillo Matarazzo, que abriga a Fundação Bienal, foi construído em 1954 junto com o Parque do Ibirapuera e os outros prédios projetados por Oscar Niemeyer no contexto das comemorações do IV centenário da cidade de São Paulo. Quando não está habitado pela segunda maior bienal do mundo, o prédio dá espaço a diversos tipos de eventos, de desfiles de moda àqueles de entretenimento e tecnologia. Quando se está ciente da importância arquitetônica e histórica do prédio, a visão do edifício vazio, largo e desnudo, repleto de colunas, pavimentos, curvas e paredes envidraçadas é emocionante, mas também assustadora.

Em meio às grandiosas narrativas modernas, é quase impossível não se afetar pelo impacto das colunas largas que sustentam o prédio desde o subsolo e atravessam os andares até o último deles abraçadas pelo vão com mezanino interno serpenteante e dançante. De qualquer ponto de um andar, você vê a outra ponta. No parapeito, é possível ver os andares de baixo ou de cima. O fosso gerado pelo mezanino dos três pavimentos, que convida a conhecer o que se passa em todo o ambiente, é conhecido como “vão”. Enquanto as linhas retas e bem definidas de todo o prédio nos estabilizam, a transparência dos vidros parece integrar o concreto interior com a natureza calma do lado de fora. Tanto o vão quanto as áreas amplas dão a impressão de que é possível apreender tudo a todo instante, e é aqui que as perspectivas decoloniais instrumentalizam o público para habitar tal espaço de outras formas.

Conhecida na história das Bienais de São Paulo como ponto de destaque da exposição, a proposta de fechamento do mezanino foi alvo de críticas e curiosidade no momento do anúncio do projeto arquitetônico. Com algumas frestas, as paredes que fecham o vão se conectam conceitualmente à percepção de que conhecer tudo é uma ilusão modernista e que o segredo também faz parte das etapas do saber, como nos mostram as religiões de matrizes africanas. Uma arquitetura que nos convida a caminhar como numa roda de capoeira, atentar a qualquer imprevisibilidade, nos perder em labirintos, arriscar rotas para adentrarmos ainda mais ou sair, buscar uma sala e descobrir outra, encontrar cores nas paredes onde antes imperava o branco. Desta forma, a pessoa visitante encontra nas Coreografias do Impossível uma arquitetura que absorve, elabora e atualiza as características do pavilhão original e, ao mesmo tempo, cria espaços que a todo instante desafiam o caminhar e o sentir.

Presenças que redefinem as artes e a brancura moderna

O destaque da arquitetura nesta edição é proporcional à urgência dos debates sobre estruturas sociais, como algumas obras mostram. Neste sentido, talvez os mais didáticos sejam os trabalhos do artista e professor Sidney Amaral (1973-2017), que na pintura O estrangeiro (2011) apresenta a si próprio a remar com um cabideiro sobre um colchão no interior do pavilhão da Fundação Bienal, identificado ao fundo pelas marcantes colunas brancas. Sobre o colchão a flutuar num mar escuro, o mictório de Duchamp (1917) é carregado pelo personagem numa pintura de tom pessimista. A presença de Amaral nesta exposição ganha especial destaque por se tratar de mais um artista Negro que só pôde acessar tal espaço emblemático nas artes após a morte. E, em seu caso, expressou tal frustração na referida pintura.

O fechamento do vão sugere outra circulação no prédio, levando o público do primeiro para o terceiro pavimento. Ao chegar ao terceiro andar, a pessoa visitante se depara com a parede com os trabalhos em têxtil de Edgar Calel, que, em seu outro lado, abriga as pinturas das mulheres-mangue de Rosana Paulino. Todo o andar, que antes podia ser visto por inteiro, passou a ser permeado por salas que criam momentos de fechamento, introspecção, reserva, mas também espaços de abertura, ampliação e diálogo. Nas palavras do curador Hélio Menezes, trata-se de “um espaço que questiona e faz frente à métrica ortogonal, progressiva, linear”, com referência conceitual ao tempo espiralar da professora e ensaísta Leda Maria Martins.

Alguns destes movimentos convidam as pessoas a adentrar salas com iluminação apropriada para a visualização de pinturas, fotografias, desenhos e instalações, como a do projeto de Citra Sasmita, as guiam por intimistas e escuras salas de vídeo, como aquela onde se encontra Shakedown (2018), filme da diretora Leilah Weinraub sobre um clube de strip-tease de e para lésbicas nos EUA, impelem ao encantamento que é encontrar a natureza externa do parque em meio à transição entre uma sala e outra ou, simplesmente, na abertura para um novo espaço banhado pela luz do dia, como na instalação de Carlos Bunga, Habitar el color (2015-), que consiste em uma sala cujo chão está coberto por uma camada de tinta rosa.

Uma outra característica notável da relação obras-arquitetura é a quantidade de trabalhos que sobem as pilastras do prédio, como as instalações Pulmão da mina (2023), de Luana Vitra, Outres (2023), de Daniel Lie, ZUMBI ZUMBI ETERNO, de Julien Creuzet, e ave preta mística (2022-), de Tadáskia.

A presença do Quilombo Cafundó e da Cozinha da Ocupação 9 de Julho, grupos que marcam suas presenças na exposição a partir das atuações cotidianas na defesa de territórios, ajuda a compreender profundamente que a arquitetura cria, molda e reinventa não apenas os modos de habitar espaços, numa perspectiva emancipatória ou limitadora, como também pode ser tão imprevisível que instiga a imaginar as possibilidades dos mundos e espaços a serem inventados. Uma arquitetura sonora com ritmos sincopados.

Publicações como extensão expositiva: escritas curatoriais, críticas e educativas

Em diálogo com as proposições da curadoria, foram programadas visitas, debates e formações, entre outras coisas, incluindo a organização de duas publicações educativas, dançar é inscrever no tempo/aqui, numa coreografia de retornos, lançada em 14 de abril, e antes de estar em mim já esteve nelas/meu modo de pensar é um pensar coletivo, em 16 de agosto. Ambas as publicações foram distribuídas gratuitamente durante os dias de mostra e disponibilizadas online no site da Bienal. Os textos escritos pela equipe de educação, pelos curadores e artistas convidados nos leva através de proposições múltiplas e abertas, sem a busca de conclusões ou definições, desaguando em pensamentos e ações propositivas. Uma terceira publicação está prevista para ser lançada em 2024, para servir de base para as itinerâncias da exposição.

O catálogo desta edição conta com textos referenciais para o conceito da mostra, desde ensaios individuais dos curadores e autores convidados, como Gladys Tzul Tzul, Hagar Kotef, Tiganá Santana, Ilenia Caleo, Rizvana Bradley e Denise Ferreira da Silva, até a republicação de Performances da oralitura: corpo, lugar da memória, de Leda Maria Martins, publicado originalmente em 2003. Por fim, biografias críticas sobre cada artista foram escritas por mais de 40 autores convidados. Além disso, a edição e o design do catálogo são, em si, uma experiência estética e sensorial.

Arte-educação como plataforma de emancipação

O trabalho da equipe de educação da Bienal também é uma das preciosidades esperadas em cada edição do evento. É histórico o trabalho de educação da Bienal, uma das pioneiras na arte-educação museal no Brasil, com atuação desde as primeiras edições. A formação de professores, por exemplo, é destaque entre os profissionais da área, que têm ali uma possibilidade de atualização nos diversos temas das artes contemporâneas.

Apesar da fundamental importância das ações educativas da Bienal, é histórica também a luta de seus educadores e profissionais da área. A cada edição surgem novos questionamentos sobre o papel do educativo em suas estruturas artísticas, políticas e trabalhistas. Desde 2009, a Bienal conta com uma equipe permanente de profissionais da educação, com cerca de 10 pessoas, que atua no diálogo entre as ações de longo prazo e as dinâmicas específicas de cada edição. A cada mostra, o grupo é fortalecido pela contratação de educadores temporários, que nesta edição foi de, aproximadamente, 44 profissionais formados e 20 estagiários, responsáveis por acolher o público e realizar visitas agendadas e espontâneas, além das atividades formativas.

No dia 18 de outubro, um grupo de trabalhadores que inclui parte dos mediadores, tornou pública a Carta aberta de repúdio às condições de trabalho na 35ª Bienal de São Paulo, relatando situações de constrangimentos e condições inapropriadas para uma boa dinâmica de trabalho. Entre as notificações e reivindicações, estão: “Manter local de trabalho favorável e adequado às atividades propostas; Fornecer material físico e tecnológico apropriado à execução normal do trabalho; Prevenir os danos que o empregado possa sofrer; Promover ambiente de trabalho agradável e estimulante, livre de qualquer forma de discriminação ou preconceito”.

Após a repercussão na mídia, a Fundação Bienal respondeu ao documento com uma nota, afirmando desconhecer as solicitações apresentadas, questionando o fato de o grupo não haver buscado os meios internos de diálogo, mas se comprometendo a conversar com ele. Como lembrou Jandir Jr., um dos artistas desta edição, em postagem na sua conta pessoal do Instagram, realizada em 7 de novembro: “se trabalhadores buscam outros meios que não os da oficialidade da instituição para se fazerem ouvides, talvez seja porque nossos problemas, isto é, os problemas da classe trabalhadora, almejem a publicidade, a vida pública.”. Jandir Jr. se coloca dentro do coletivo por ser da classe trabalhadora, educador e tratar em suas obras de assuntos referentes às condições de trabalho em espaços artísticos. Junto com Antonio Gonzaga Amador, compõe a dupla Amador e Jr. Segurança Patrimonial, projeto performático que realiza, com ironia e questionamento, ações protagonizadas pelos artistas uniformizados como profissionais de segurança, vivenciando situações que confrontam o público e suas expectativas sobre o setor. Na mesma postagem, Jandir Jr. nos lembra que, infelizmente, essa realidade não diz respeito apenas à equipe desta edição da Bienal, tampouco está nas mãos dos curadores sua alteração. O debate é antigo e afeta a classe de educadores em outros museus e espaços artístico-culturais do país. Jandir Jr, recorda, por exemplo, os movimentos de luta promovidos por educadores e trabalhadores das artes na Carta aberta ao público escrita pela equipe de mediadoras, mediadores, supervisoras e supervisores da 13ª edição da Bienal do Mercosul, movimentos de greve na 9° Bienal do Mercosul, na Carta à Escola de Artes Visuais do Parque Lage, dos artistas integrantes do Programa Gratuito de Formação e Deformação da EAV Parque Lage, em 2022, entre outros.

Obviamente, isso não diminui a importância da luta dos trabalhadores da 35ª Bienal, ao contrário, somam-se forças na urgência de ações afetivas nas instituições, reforçando a necessidade de melhorias internas e externas à instituição.

Manter a terra fértil para obter novas colheitas

Esta Bienal é, sem dúvida, uma edição de impacto, que promoveu gestos de mudança nos formatos que a exposição costumava ter. Caberá à Fundação Bienal a continuidade e ampliação deles. A instalação Kwema/Amanhecer (2023), de Denilson Baniwa, é uma das poucas a ocupar os espaços externos do pavilhão. Composta por um sutil labirinto de caixotes de terra onde foram plantadas mudas de milho, a obra põe em prática a contagem do tempo a partir do nascimento das plantas, seu crescimento e, se concluirá na colheita, programada para o último dia da mostra. A colheita marca o encerramento desta etapa, mas deixa o alerta para que, caso a Fundação Bienal queira realizar novas ceifas, deverá fazer novo plantio. A 35ª Bienal abriu caminhos. Agora caberá à instituição definir o que fazer com a terra adubada.

Luciara Ribeiro – Educadora, pesquisadora e curadora independente. É mestre em História da Arte pela Universidade de Salamanca (USAL, Espanha, 2018) e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, Brasil, 2019). É graduada em História da Arte pela UNIFESP (2014) e possui curso técnico em museologia pela Escola Técnica Estadual de São Paulo (ETEC/SP, 2015). É integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA). É colaboradora da revista Contemporary And América Latina e da plataforma virtual Projeto Afro. É docente no Departamento de Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina e no Centro Universitário Armando Alvares Penteado.

Maria Luiza Meneses – Curadora independente, educadora e pesquisadora. Graduanda em História da Arte pela UNIFESP, integra os coletivos RedLEHA, Nacional TROVOA e Rede Graffiteiras Negras. Desde 2019 realiza projetos de valorização na Pinacoteca de Mauá. Foi assistente pessoal da curadora Diane Lima, atuando com ênfase em pesquisa, produção e curadoria durante a 35ª Bienal de São Paulo, Coreografias do Impossível (2022-2023). Possui textos publicados sobre arte contemporânea, artistas afro-brasileiros, cultura hip-hop, educação freireana e guerras culturais.

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