O artista brasileiro Moisés Patrício fala de sua trajetória permeada por “viagens após 400 anos preso no Brasil”, comenta “as vias de acesso para um artista negro” e reflete sobre o contexto político brasileiro do momento.
Moisés Patrício, Aceita?, 2014/2019. Foto: Cortesia do artista.
C&AL: Você é um dos artistas contemporâneos que têm renovado a chamada arte afro-brasileira, com sua experiência pessoal bastante semelhante à de muitos jovens negros brasileiros, africanos, afro-americanos ou afro-caribenhos. Conte um pouco da sua história e como se decidiu pelas artes visuais?
Moisés Patrício: Laroîe Exu! Três fatores importantes determinam minha história de vida, pesquisa e obra: sou candomblecista, filho do orixá Ésú (Exu), e feiticeiro. Fui iniciado na nação Ketu aos três anos de idade, todos os meus valores estão ligados à filosofia das comunidades de terreiro, à cosmovisão yorubá, circular, sem começo e fim.
Também sou fruto de uma linda iniciativa socioeducativa chamada “Meninos de arte”, idealizada e desenvolvida pelo pintor e professor argentino Juan Jose Balzi (1931-2017), onde se deu o meu primeiro contato com as artes plásticas. Em 1994, o professor Balzi, como ficou conhecido no bairro, promoveu diversas oficinas de desenho e pintura na divisa entre São Paulo (Vila Industrial) e Santo André (Vila Sá). A iniciativa consistia em oferecer aulas de desenho, pintura e passeios aos principais museus da cidade de São Paulo para crianças e adolescentes.
Eu morava do lado do local onde eram realizadas as oficinas. Um dia, passando por lá, vi a oficina, fiz uma aula, gostei, voltei e continuei frequentando o espaço. Durante esse tempo, recebi todo tipo de estímulo para estudar, virei “pupilo” do Balzi e fui orientado por ele até 2017, ano de sua morte vitimado por câncer, aos 86 anos. Resumindo: comecei como aluno, dois anos depois me tornei oficineiro e posteriormente assistente do mestre. Sou arte-educador, tenho interesse em iniciativas que lidam com jovens em conflito com a lei.
C&AL: Você leva jeito com redes sociais: muita gente te acompanha, vibra com seu trabalho, seus deslocamentos, sua habilidade de juntar pessoas, como é o caso da ação Presença Negra.
MP: Nasci no mesmo período em que a internet surgia no Brasil. A minha habilidade com as redes sociais se deve a isso, somada a uma carência histórica de ser ouvido, visto, reconhecido e valorizado enquanto cidadão. Eu venho (meus ancestrais) de um histórico de desvalorização e subtração dos valores, saberes e fazeres negros. As redes sociais me possibilitam romper com esse ciclo depravado da nossa sociedade.
Moisés Patrício, Auto-retrato, 2016. Foto: Cortesia do artista.
C&AL: A série Aceita?, que discute o papel do trabalho manual e intelectual historicamente produzido por negros, tem circulado em exposições e já integra coleções particulares brasileiras, embora ainda nenhuma coleção pública. Como surgiu e se mantém essa série fotográfica tão importante e qual a relação das imagens nela produzidas com a pintura e a performance?
MP: A série Aceita? nasce dessa interação entre as habilidades próprias ao universo da internet e o desejo de ser ouvido. Sou pintor, e não pela tinta que uso, mas pela forma que vejo e atuo no mundo. Meu orixá é o responsável pela comunicação visual. São justamente as redes sociais que me sobraram para me comunicar. É a ferramenta que tive acesso até o momento e nas redes os resultados visuais que consigo efetivamente comunicam com um público amplo.
C&AL: Poderia comentar um pouco mais sobre sua relação com o candomblé, religião afro-brasileira nascida, como diz o antropólogo Marcio Goldman, de uma experiência mortal e mortífera, e assunto importante na obra de artistas como Carybé, Mestre Didi, Rubem Valentim, Djanira da Motta e Silva, Eneida Sanches, Ayrson Heráclito, Nadia Taquari e tantos outros?
MP: Minha relação com o candomblé vem de família: meu avô materno – João Bento da Silva ou Pai João de Ayrá – é sacerdote há mais de 40 anos. Carrego a missão de dar continuidade a seus estudos e cuidados com a cultura dos orixás. Tudo que sei sobre o conceito de candomblé – respeito, ética, resistência, comunidade, arte no fazer religioso e política – aprendi no terreiro. Tenho acesso aos conhecimentos, ciência acumulada por séculos pelos povos africanos e negros brasileiros e isso tem sido minha base, minha estrutura para refletir sobre meu entorno. E isso aparece com força na minha poética.
C&AL: Como você vê a situação atual do Brasil, o impeachment de Dilma Roussef em 2016, a prisão injusta do ex-presidente Lula, o crescimento das desigualdades e da violência contra a população negra e pobre? O que você já fez e tem feito no sentido de denunciar essa violência estatal e institucional no país?
MP: Vivemos uma crise da globalização. Não dá para pensar no Brasil sem fazer esse recorte, após um golpe parlamentar, e com uma crise econômica que é global. A situação do negro e do pobre aqui e no mundo se agravou, vale lembrar que tudo se iniciou no setor financeiro dos Estados Unidos em 2008. E sigo as orientações da minha mãe que vive repetindo: “não se meta em confusão, se mantenha vivo. O negro no Brasil sempre foi o escudo de tudo, sempre foi o primeiro a morrer…”. O que ela diz é o que tenho feito.
De qualquer forma, estou acompanhando de perto o desenrolar da história. Nasci em 1984, no período em que ocorria a transição da ditadura militar (1964-1985) para o período democrático. O que vemos hoje é que os poucos direitos civis conquistados durante o mandato dos ex-presidentes Lula da Silva (2002-2010) e Dilma Roussef (2010-2016) estão sendo surrupiados. Tenho feito palestras denunciando, venho pensando e produzindo obras-denúncia, mas é uma luta injusta já que o outro lado – a direita e a extrema direita – tem pólvora de sangue nas mãos. Infelizmente, o fascismo é um fantasma que insiste em não nos deixar.
C&AL: Faz pouco tempo que você esteve fora do Brasil, em viagem de mais de três meses. Fale um pouco sobre as rotas que escolheu fazer e as novas possibilidades que se abriram com essa experiência da viagem?
MP: Como diria meu avô, estou batendo perna pelo mundo após 400 anos preso no Brasil: sou o primeiro da família a fazer uma viagem internacional. Escolhi iniciar meu trânsito nos países do continente africano. Passei em 2018 por Dakar, no Senegal, e no fim do mesmo ano fui para o Marrocos. Em 2019, fiquei duas semanas no Benin (Ouidá) prestigiando o Festival Anual de Vudu. Em fevereiro, fui para Nova York, no contexto de uma residência artística para artistas brasileiros. Em julho de 2019, volto à cidade. Em São Paulo, continuo mantendo o Estúdio Ikorita (em iorubá significa encruzilhada). Nele, desenvolvo ações de integração de pessoas do meio artístico negro. Minha ideia daqui em diante é continuar a viajar e terminar essa primeira etapa de andanças em Tóquio em 2020. Ou seja, quero entender o mundo e suas vias de acesso para um artista negro.
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Alexandre Araujo Bispo é antropólogo, crítico, curador independente e educador.