Anaïs Cheleux é uma fotógrafa e performer de Guadalupe cujo trabalho se concentra no carnaval e na identidade afrodescendente, com foco no gwo siwo, um xarope que simboliza libertação e orgulho. Seu trabalho mistura fotografia e performance, envolvendo temas de identidade, espiritualidade, herança cultural e expressão corporal.
Anaïs Cheleux, Mas Maten, Guadalupe, fotografia em câmera digital, 2016. Cortesia da artista.
Anaïs Cheleux, Assiko Xama Xol, Ilha de Gorée, câmera digital, 2024. Cortesia da artista.
Anaïs Cheleux, performance para lembrar a abolição da escravidão na Martinica, durante a abertura da exposição ‘Ceci n’est pas un pays’ na Off Biennale de Dakar 2024. Foto: Jean-Baptiste Joire. Cortesia da artista.
Estou na vernissage da exposição [RE]COUTURE da artista Guy Gabon, curada por Minia Biabiany, em Pointe-à-Pitre, Guadalupe, em meados de dezembro de 2023. Enquanto espero com um grupo de pessoas pelo início de uma visita guiada, Joëlle Fifi se aproxima para se apresentar. Ela é produtora cultural e dirige a Arts au Pluriailes, uma organização local que apoia artistas em candidaturas a bolsas, residências e viagens de pesquisa, além de promover o networking para jovens talentos da região. De repente, ela aponta para uma jovem ao nosso lado: “Essa é Anaïs, uma das artistas que temos acompanhado nos últimos anos”.
Algumas noites depois, a fotógrafa e performer Anaïs Cheleux me aguarda em seu carro, do lado de fora da Universidade das Antilhas Francesas, em Pointe-à-Pitre. Estamos a caminho do estúdio dela em Morne-à-l’Eau, uma pequena cidade a cerca de 30 minutos da capital. Além de ser artista, Anaïs é professora. Ela se divide entre essas duas atividades, pois o ensino lhe garante uma certa estabilidade, algo crucial diante dos desafios de construir uma carreira artística em uma Guadalupe ainda profundamente moldada por estruturas coloniais.
Quando chegamos à casa dos pais dela, somos calorosamente recebidas por sua mãe. Embora o estúdio de Anaïs seja uma extensão da casa de sua família, ele funciona como um espaço totalmente independente tanto para morar quanto para criar. O estúdio é amplo, bem iluminado, com um ar moderno e acolhedor, reforçado pelos pisos de madeira. Há um campo com estantes cheias de livros, e ao centro, um banco de madeira. Três fotografias em dibond estão penduradas na parede próxima ao sofá cinza, no qual nos sentamos para conversar.
Cheleux se formou em fotografia, mas sua jornada artística, profundamente conectada ao carnaval e à sua própria identidade cultural, começou bem antes. Além de participar dos eventos carnavalescos, a artista passou a documentar diferentes carnavais pelo Caribe, e foi ficando fascinada com o uso do melaço de cana-de-açúcar — gwo siwo, em crioulo guadalupense — como elemento de fantasia aplicado à pele. “Minha identidade guadalupense passa pelo carnaval. É assim que vejo e vivo minha identidade. Visualmente, [o carnaval] é o gwo siwo para mim.” No carnaval, o melaço, subproduto da produção de rum, simboliza maroons [quilombolas], a libertação das pessoas escravizadas e o orgulho afrodescendente.
Minha identidade guadalupense passa pelo carnaval. É assim que vejo e vivo minha identidade. Visualmente, [o carnaval] é o gwo siwo para mim.
A constatação de que o gwo siwo também é utilizado em outras regiões caribenhas, como a ilha Granada, fez a artista questionar as noções de identidade nacional e se conectar com culturas vizinhas. Ela conta que, ao encontrar uso semelhante em Granada, pensou: “Será que somos realmente tão diferentes?”
Ela aponta para uma das três fotografias, da série Black Blood (2018), feitas em Granada e agora na parede, e então começa a tocar uma música no laptop. “Você consegue ouvir o coro, a nostalgia, ao fundo?”, pergunta Cheleux. Escuto mais atentamente e, por trás dos ritmos acelerados dos tambores, escuto um coro e sinos suaves. Olho novamente para a imagem e tenho a sensação de estar ouvindo uma imagem estática pela primeira vez, uma experiência que continua mesmo após o fim da música. Algumas semanas antes, eu havia visitado o estúdio de Eliazar Ortiz Roa na República Dominicana, onde, através dos pigmentos que ele mesmo mistura, tive uma experiência sensorial com cores pela primeira vez. Ao contemplar a obra de Anaïs, sou envolvida por uma sensação quase hipnótica, semelhante àquela que experimentei ao me olhar para o trabalho de Roa.
A imersão física é parte essencial da prática artística de Cheleux, que continua a refinar essa abordagem. Sé Konsa Nou Yé (“somos assim”, em crioulo guadalupense) é uma série na qual a artista busca permitir que os corpos cobertos por gwo siwo falem por si. Inicialmente, ela trabalhava com uma amiga dançarina, mas a amiga sugeriu que Anaïs também se colocasse diante da câmera. Ela o fez, cobrindo-se de gwo siwo e fazendo autorretratos. “Algo acontece quando coloco o gwo siwo na minha pele”, ela diz. “Me sinto conectada a outra coisa, a uma certa espiritualidade.”
Esquerda: Anaïs Cheleux, Black Blood, Granada, câmera digital, 2018. Cortesia da artista. Direta: Anaïs Cheleux, Sé Kon Sa Nou Yé (somos assim), autorretrato, m câmera digital, 2018. Cortesia da artista.
Essa experiência de estar detrás e na frente das câmeras a levou a se aventurar pela performance. Faz sentido que o espaço que ela adentra ao performar é íntimo, permitindo a reflexão sobre questões igualmente íntimas. “Trata-se também do que expresso por meio do corpo, daquilo que não consigo dizer com palavras”, compartilha. A performance de Cheleux incorpora como ela experimenta sua identidade guadalupense, ancorada no carnaval, nos tambores e no gwo siwo.
Em 2022, por meio de uma oportunidade facilitada pela Arts au Pluriailes, a artista criou a performance Les morts ne sont pas morts (“Os mortos não estão mortos”), colaborando com a companhia de dança beninense Cie Noukpo. Misturando dança e fotografia e apresentada no Festival Couleurs d’Afrique, em Ouidah, Benin, e no Institut Français de Libreville, Gabão, essa performance foi sua primeira colaboração no continente africano.
Viagens e residências internacionais são fundamentais para a prática da guadalupense, conectando-a a artistas que enfrentam estruturas coloniais semelhantes. Entretanto, ela não planeja morar fora de Guadalupe. Em suas residências, Cheleux busca relacionar os contextos locais com sua própria identidade. Na Ilha de Gorée em 2023, em Senegal, por exemplo, a artista se conectou com Assiko, uma percussão quadrada, e com seu potencial de transmissão intergeracional. A artista criou uma performance que busca reconectar gerações mais velhas e mais novas por meio de um diálogo rico entre o guadalupense gwoup-a-po e o Assiko. A série de fotografias resultante, Assiko, Xama Xol (Assiko, meu amor, em wolof:), está exposta na OFF Biennale de Dakar 2024, ao lado de uma performance (que não conta com elementos fotográficos) no pavilhão martinicano, intitulada Ceci n’est pas un pays (Isso não é um país, em francês).
Anaïs Cheleux, performance para lembrar a abolição da escravidão na Martinica, durante a abertura da exposição “Ceci n’est pas un pays’ na Off Biennale de Dakar 2024. Foto: Jean-Baptiste Joire. Cortesia do artista.
Logo após sua viagem a Dakar e o adiamento da Bienal oficial de Dakar devido a agitações políticas em maio de 2024, enviei a Cheleux uma mensagem de voz perguntando sobre sua experiência em Dakar. Com firmeza, ela declarou que tanto a OFF quanto a Bienal oficial são eventos que não podem ser subestimados. “Para uma artista jovem como eu, a OFF foi extremamente importante. As oportunidades de ver exposições, práticas artísticas e obras, além de se conectar com galerias são cruciais; ou seja, foi ótimo quando pensamos no aspecto comercial da coisa”, disse ela. No entanto, compartilhou com pesar que: “como artista guadalupense, achei uma pena que foi adiada, principalmente porque artistas como Stéphanie Melyon-Reinette, Elladj Lincy Deloumeaux e Samuel Gelas estão na seleção oficial. Parece que nesta edição houve uma abertura mais ampla e um maior reconhecimento de obras caribenhas francesas – e eu não terei recursos para viajar a Dakar novamente em novembro.”
Antes de Cheleux me levar de volta, peço a ela que me mostre um pouco de gwo siwo. Ao se levantar para me mostrar uma garrafa, ela comenta: “Percebi que ainda uso a mesma garrafa de gwo siwo desde 2020. Com o tempo, vai escurecendo.” Assiko, Xama Xol, a exposição de Anaïs Cheleux, foi realizada de 18 de maio a 18 de junho de 2024. Em junho de 2024, ela participa de uma residência no CIAP de Saint-Laurent du Maroni, na Guiana Francesa, onde pretende trocar experiências com comunidades negras que colocam a dança e a expressão corporal no centro de sua identidade, tanto na cultura quanto nas práticas religiosas.
Anaïs Cheleux é artista multimídia de Guadeloupe, cujo trabalho investiga a identidade caribenha e a dinâmica do corpo por meio da fotografia e da arte performática. Em sua prática, ela se conecta com tradições culturais, como o carnaval e o uso de gwo siwo (melaço). Instagram
Marny Garcia Mommertz (ela/dela) é escritora e artista que explora formas experimentais de arquivamento dentro da diáspora e investiga a vida da artista e ativista negra Fasia Jansen, sobrevivente do Holocausto na Alemanha. Atualmente, sua prática artística foca em montagem. Ela é managing editor da C&AL. Instagram
Tradução: Jess Oliveira