Este ensaio questiona as dinâmicas estruturais da inclusão de artistas de proveniência negra e indígena no mercado de arte ocidental, e explora como artistas fazem intervenções não apenas no conteúdo, mas também na forma, na temporalidade e nos modelos de propriedade de suas obras.
Edgar Calel, vista da instalação, Ru k’ox k’ob’el jun ojer etemab’el (O eco de uma antiga forma de conhecimento), 2021. Frutas e pedras, Proyectos Ultravioleta - Frieze London. Cortesia do artista e Proyectos Ultravioleta, Cidade da Guatemala. Foto: Lisa Gordon.
É fácil pensar nos mercados financeiros internacionais como uma continuação da Companhia Holandesa das Índias Orientais – a primeira corporação colonial multinacional a vender ações. Já é mais difícil imaginar que os mercados de arte ocidentais, capazes de transformar as epistemologias e objetos culturais em produtos, fazem parte dessa mesma história de colonialismo e extração.
Na década passada, o interesse desses mercados pela arte e cultura da Maioria Global foi bem vindo – o que é compreensível –, mas raramente questionado ou desafiado. Um dos aspectos críticos dessa relação financeira é que, embora os mercados não possam mais comercializar pessoas marginalizadas sob a forma mercadorias, eles têm o potencial de comercializar dessa forma suas culturas e epistemologias. Não há nenhum órgão governamental nem termos e condições para regular essa questão. Sendo assim, como podemos lidar com isso? O que acontece quando artistas de proveniência Negra ou Indígena fazem intervenções não apenas no conteúdo, mas também na forma, na temporalidade e nos modelos de propriedade que desafiam as regras dos mercados de arte?
Diante desse impasse, este texto destaca as práticas de negociação de Edgar Calel e Cameron Rowland, que honram as comunidades ancestrais e sua história de subjugação, ao mesmo tempo que elevam o padrão ético dos mercados de arte. Suas práticas demonstram que a arte não está simplesmente inserida no mercado, mas que também pode desafiá-lo e mudar sua orientação histórica.
O discurso sobre a relação – ou a ausência dela – entre artistas pertencentes à Maioria Global e os mercados de arte ocidentais gira principalmente em torno de questões da inclusão cega e da meritocracia. No entanto, vêm surgindo críticas a essa inclusão e a como ela não necessariamente muda as estruturas das quais se torna parte. Embora não seja um ponto central das conversas convencionais, a arte e as práticas artísticas não-ocidentais são capazes de intervir nas instituições e nos mercados, indo além da estética e adentrando o âmbito do ontológico, ético e legal. E isso se torna cada vez mais urgente.
No pensamento Indígena Caqchiquel, quase nada é feito de forma solitária. Tudo que fazemos é realizado coletivamente, e é a coletividade que serve de base para a descoberta.
Nascido em San Juan Comalapa, uma cidade de 40 mil habitantes, na Guatemala, Edgar Calel é um artista visual Maia Caqchiquel, que comenta o mundo através da cosmovisão Indígena. “No pensamento Indígena Caqchiquel, quase nada é feito de forma solitária”, explica. “Tudo que fazemos é realizado coletivamente, e é a coletividade que serve de base para a descoberta”. Calel trabalha bastante junto a sua comunidade em Comalapa, que desempenha um papel importante no seu fazer artístico.
É por essa razão que nunca teve a intenção de vender sua obra The Echo of an Ancient Form of Knowledge (Ru k’ ox k’ob’el jun ojer etemab’el) (O eco de uma antiga forma de conhecimento, 2021), composta por um ritual e uma instalação que apresenta frutas e vegetais em cima de pedras dispostas no chão. A obra não pode ser considerada completa até que o ritual seja executado em particular por pessoas do povo Caqchiquel. Quando Catherine Wood, curadora da Tate Modern de Londres e a equipe do Tate Fund demonstraram interesse, o artista e seu galerista Stefan Benchoam concordaram em “emprestar” a obra com base no pensamento e nos costumes Maia, sob a forma de “custódia”. Assim, a Tate tornou-se a primeira instituição a firmar esse tipo de acordo durante a feira Frieze London, em 2021, para a qual adquiriram a custódia da instalação por 13 anos, remunerando o artista pela obra e fazendo uma doação para uma causa Caqchiquel da escolha de Calel. Ao fim desses 13 anos, um novo acordo e negociação devem ser feitos com o artista e sua comunidade.
A importância deste acordo está em demonstrar que artistas podem mitigar os interesses às vezes predatórios e extrativistas das instituições ocidentais, aplicando costumes ancestrais que apoiam sua comunidade. No entanto, isso levanta também a questão sobre se certos elementos das culturas ancestrais deveriam ser absolutamente inegociáveis com instituições ocidentais. “Sou grato a nossos ancestrais por nos darem licença e permitirem que espalhemos seus conhecimentos e sabedoria em até sete lugares diferentes ao redor do mundo”, declarou Calel ao Artnet News em 2021, referindo-se às sete versões da obra, ordenadas de acordo com o número de estrelas na constelação do Grande Carro. Outra questão que emerge é o problema da coletividade e da autoria, e se as instituições ocidentais, com suas histórias coloniais, podem algum dia ser confiáveis para proteger e respeitar tradições e culturas que têm entendimentos não capitalistas da vida material, e que a institucionalização ocidental já submeteu à extração e ao saque.
Cameron Rowland Bankrott (Falência), 2023 Dívida indefinida Indenizações foram pagas aos proprietários de pessoas escravizadas. A emancipação compensada permitiu que proprietários de pessoas escravizadas mantivessem o valor que haviam atribuído à vida dessas pessoas, além dos lucros que haviam sido obtidos com o trabalho forçado. A emancipação compensada no Haiti, Brasil, Cuba, Washington D.C., bem como nas colônias britânicas, dinamarquesas, holandesas e na África Oriental Alemã remunerou os proprietários pela perda de sua posse sobre as pessoas escravizadas. Esses proprietários e seus financiadores receberam compensações monetárias, obrigações de dívida com juros elevados e servidão por contrato como forma de reembolso. Os pagamentos de compensação estimularam o crescimento das instituições financeiras britânicas que possuíam hipotecas pendentes de plantações, incluindo o Barclays, o Lloyds Bank, e o Royal Bank of Scotland. A dívida de compensação haitiana, originalmente paga por pessoas anteriormente escravizadas a proprietários franceses, foi comprada e vendida por vários bancos, incluindo o Crédit Industriel et Commercial, o Crédit du Nord, o Citibank, e o ODDO BHF. Esses pagamentos de compensação continuaram a crescer dentro dos bancos europeus, juntamente com os lucros da economia escravagista. O valor da vida, do trabalho e da capacidade reprodutiva das pessoas escravizadas continua sendo parte integrante das instituições financeiras, corporações, universidades, museus e governos da Europa. Frankfurt am Main é o centro monetário da zona do euro, e abriga escritórios de quase todas as grandes empresas financeiras europeias. A concentração de empresas financeiras em Frankfurt am Main tem enriquecido a cidade desde o século 17. Um empréstimo de 20.000 euros foi concedido ao Museu de Arte Moderna (MMK) pela Bankrott Inc., uma companhia criada com o propósito de manter uma dívida indefinida. Por se tratar de um empréstimo sob demanda, nenhum pagamento pode ser feito até que o credor o exija. A Bankrott Inc. nunca exigirá o pagamento. A dívida acumulará juros indefinidamente, aumentando a uma taxa de 18% ao ano, a taxa mais alta permitida por lei. O Museu de Arte Moderna é um departamento do governo municipal – Amt 45 i. Portanto, essa dívida é de responsabilidade da cidade de Frankfurt am Main. Como forma de reparação, essa dívida é uma restrição à acumulação contínua derivada da escravidão. Como negação de valor, ela não busca redistribuir a riqueza derivada da vida escravizada, mas impor um ônus a quem a herdou.
Os vínculos profundos entre o colonialismo e as instituições ocidentais remontam a séculos e essa dinâmica moldou todas as instituições ocidentais de maneiras mais ou menos visíveis. Na prática artística de Cameron Rowland, sua pesquisa torna esses vínculos mais perceptíveis. Em sua exposição individual de 2023, Amt 45 i (Gabinete 45 i), no Museu de Arte Moderna (MMK), em Frankfurt, Alemanha, Rowland, proveniente dos Estados Unidos, apresentou sua investigação sobre como a cidade e a instituição se beneficiaram da escravidão – isso apesar de a Alemanha não ter sido um agente tão importante no tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, diferentemente da Grã-Bretanha ou da própria Tate, fundada por Henry Tate com a fortuna particular obtida com o comércio de açúcar.
Por meio de uma série de instalações conceituais com objetos de significado histórico e intervenções legais, Rowland revelou a forma pela qual instituições, inclusive o próprio MMK, estão envolvidas em sistemas históricos de exploração racializada. O ponto central da exposição foi Bankrott (Falência), um empréstimo legalmente vinculado por meio do qual a empresa de Rowland, Bankrott Inc., emprestou 20 mil euros ao MMK por um período indefinido, com uma taxa de juros anual de 18%. Segundo esse acordo, em 20 anos, o museu estará legalmente endividado em 1.256.518 euros com a empresa de Rowland. Embora o museu nunca tenha a intenção de pagar e tampouco essa demanda exista (por enquanto), esse empréstimo representa uma obrigação financeira perpétua, que remete à dívida histórica da instituição com as pessoas afetadas pela escravidão transatlântica. Com esta obra, no futuro, o museu estará em teoria falido financeiramente. Isso talvez corresponda a sua atual falência moral por se beneficiar da escravidão e casualmente organizar exposições sobre o assunto. Essas práticas, por sua vez, geram mais capital cultural para a instituição, em vez de, por assim dizer, realmente saldar sua dívida histórica.
Emprestar, em vez de vender, está no cerne da prática artística de Rowland. Sua obra destaca como a propriedade em si é parte da estrutura do capitalismo racial e deve ser questionada e renegociada como conceito. Suas obras só estão à disposição por meio de acordos de empréstimo, normalmente por tempo limitado. Instituições ou coleções podem utilizar sua obra, mas não possuí-la, derrubando toda a noção de arte como produto ou investimento. Esta prática de se recusar a atender totalmente ao capitalismo e à institucionalização alinha-se à recusa, que é em si proveniente do pensamento radical Negro, remetendo, por sua vez, à cultura quilombola nas Américas.
A obra New York State Unified Court System (Sistema Judicial Unificado do Estado de Nova York, 2016), de Cameron Rowland, por exemplo, é uma obra de arte conceitual que investiga as interseções entre encarceramento, trabalho e cumplicidade institucional no sistema judicial dos Estados Unidos. Ela é composta de quatro bancos de carvalho de tribunais, fabricados manualmente por pessoas presas na Penitenciária Green Haven, no Estado de Nova York. Ela enfatiza como o tribunal reproduz a si mesmo materialmente por meio do trabalho das pessoas que condena. Os bancos foram adquiridos através da Corcraft, a marca comercial da Divisão de Indústrias do Departamento de Correções e Supervisão Comunitária do Estado de Nova York, que emprega indivíduos encarcerados. A obra não pode ser vendida, mas apenas alugada por cinco anos pelo custo total dos produtos da Corcraft que a compõem – que foi o que fez o MoMA de Nova York.
A prática de Rowland opera em quatro níveis: o empréstimo substitui a venda, rejeitando a ideia da arte como produto; seus contratos enquanto obras de arte expõem injustiças estruturais; seu uso de sistemas legais espelha a forma pela qual a lei perpetua a desigualdade; a dívida financeira como indicativo da dívida histórica inverte a dinâmica de poder e é um fardo para as instituições, ainda que apenas em teoria.
Essas iniciativas, no entanto, trazem possíveis implicações morais e filosóficas. O próprio fato de essas instituições organizarem exposições sobre sua cumplicidade na opressão sistêmica pode levá-las a considerarem-se redimidas e não mais na obrigação de levantar qualquer questão estrutural dentro de suas paredes, e ainda menos fora delas. Isso se tornou muito nítido em todo o mundo ocidental desde o dia 7 de outubro de 2023. Por outro lado, esse tipo de gestos artísticos podem aprisionar o público que sofre essa opressão, tornando-o emocionalmente dependente de que as instituições assumam sua responsabilidade para que possa encontrar uma resolução diante da despossessão histórica horrenda e imperdoável gerada pelo capitalismo racial. As práticas de Edgar Calel e Cameron Rowland não são simples gestos artísticos. São rupturas ontológicas que abrem possibilidades para que instituições e mercados respondam por sua contínua história de violência. Ao mesmo tempo, incentivam artistas a encontrar reconciliação e regeneração por meio de suas tradições ancestrais e avaliam quais as partes de nós e de nossas culturas não vêm com uma lista de preços; pois algumas coisas simplesmente não estão à venda. Ou estão?
Edgar Calel (1987) é artista Maia Caqchiquel da Guatemala. Sua prática multidisciplinar explora a cosmologia indígena, o conhecimento ancestral, e os efeitos contínuos do colonialismo por meio de instalações, performances e gestos poéticos.
Cameron Rowland (1988) é artista conceitual dos Estados Unidos. Sua prática artística baseada na pesquisa expõe e subverte os legados econômicos e legais da escravidão, do encarceramento em massa e do capitalismo racial, reivindicando e recontextualizando terras e objetos cotidianos por meio de crítica institucional e contratual.
Will Furtado é editore-chefe da C&AL.
Tradução: Renata Ribeiro da Silva