Adepto de práticas colaborativas e ações em rede, o artista brasileiro discute a noção de trabalho a partir de lugares e grupos à margem das políticas públicas.
Still Filme Frente, Exposição Frente de Trabalho, Ícaro Lira.
Exposição Frente de Trabalho, Galeria Jaqueline Martins. Foto: Gui Gomes.
Sem título, Para Jimmie D., Parte #2, da série “Frente de trabalho”, Ícaro Lira, 2018
Uma série de contrapontos e dualidades semânticas surgem logo nas primeiras elaborações sobre a exposição Frente de Trabalho, de Ícaro Lira (Galeria Jaqueline Martins). A começar pela leitura ambígua trazida pelo título. Termo utilizado como uma medida emergencial organizada pelo Estado em auxílio a grupos de desempregados, aqui ele ganha um sentido quase inverso. A noção de trabalho continua sendo central, mas as mobilizações coletivas partem de lugares e grupos quase sempre à margem das políticas públicas. Se pelo significado original a prática é vendida como solução – ao estilo de lemas como “Não fale em crise, trabalhe” –, neste caso suas condições podem indicar a causa de problemas estruturais que tal prescrição visa combater.
Uma boa maneira de visualizar essas camadas de leitura começa em uma busca pela hashtag #frentedetrabalho. Embora a maior parte das postagens tenha sido feita pelo próprio artista, é interessante partir de um termo que coloque lado a lado imagens com conceitos tão díspares. Como, por exemplo, uma foto aérea da Transamazônica (1968-1974), projeto polêmico que dizimou milhares de indígenas e expôs os cerca de 4 mil operários a todo tipo de doença, que foi postada por Lira próxima à divulgação dos selecionados para uma Frente de Trabalho de uma prefeitura do interior de São Paulo. Ou outra imagem de um vereador informando ter solicitado o programa para seu município. “Precisamos criar mais oportunidades aos menos favorecidos, desempregados e em situação de alta vulnerabilidade social”, informa a legenda. Apesar do tom propagandista dessas peças, a visualização junto às imagens inseridas pelo artista cria um ruído interessante. No lugar do discurso otimista, elas involuntariamente revelam uma precariedade das condições de trabalho como estratégia de combate à crise – justamente o contrário do que pretendem defender.
O exemplo da hashtag para introduzir a exposição Frente de Trabalho não é nada fortuito levando-se em conta a atuação artística de Ícaro Lira, que se desenvolve quase sempre a partir de práticas colaborativas e ações em rede. Limitar uma análise ao objeto materializado no espaço expositivo, ou ao próprio conceito de uma mostra individual, parece insuficiente tendo em vista um trabalho cujo processo importa mais do que o resultado final. Especialmente pouco depois de ter realizado um projeto como o “Museu do Estrangeiro”, no último 20º Festival Sesc_Videobrasil, no qual abria mão de uma produção como autor das obras ali exibidas, assumindo-se no papel de interlocutor e na legitimação de um grupo de artistas imigrantes, excluídos daquele espaço institucional por tantas camadas.
Embora não apresente obras assinadas por outros artistas nesta mostra, a ideia de um trabalho-em-processo fica clara na montagem, que transforma o espaço da galeria em um “local de produção”, como define Gabriel Bogossian no texto curatorial. Compensados de madeira usados em canteiros de obras são trazidos para compor um dos eixos, enquanto objetos e imagens coletados em seus deslocamentos dão os indícios dos vários fazeres possíveis em troca de subsistência – de redes de pescar a carregadores de piano. A noção de um arquivo vivo, outra proposta inserida na pesquisa de Lira, ganha força também na pequena biblioteca montada em outro eixo, misturando publicações do artista com livros de referência, alguns deles indicando a origem de outras obras ali presentes.
Entre as diversas leituras sobre a ideia de trabalho aqui sugeridas, há lugar para interferências na visão de como essa atividade é tratada no circuito da arte. Um exemplo discreto aparece em uma embalagem de leite desmontada, onde se lê, em italiano, “prodotto non commerciababile” – item recolhido de doações para grupos de desassistidos. O texto na caixa traz um certo ruído ao objeto comercializado não mais em sua função original, como alerta a mensagem, mas agora como um objeto de arte.
Se algumas dessas obras podem por vezes parecer desconectadas da prática de Lira quando vistas isoladamente, dois vídeos têm um papel fundamental para contextualizá-la de forma mais ampla. Especialmente o FILME FRENTE, realizado junto com Isadora Brant e Fernanda Taddei. O trabalho mostra um sensível retrato dos moradores da Ocupação Hotel Cambridge, no centro de São Paulo, onde Lira foi um dos participantes da Residência Artística Cambridge, em 2016. Em formato documental, os personagens aparecem em vídeos-retratos filmados em plano frontal, encarando ou desviando o olhar da câmera, quase sempre em silêncio. As pausas são quebradas por gestos sutis ou comentários muito particulares sobre a identidade de cada um – como a paraguaia que fala uma frase em guarani para a filha, afirmando ser esse seu idioma oficial.
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O tema do trabalho também surge na fala de dois moradores que informam suas atividades quase como algo essencial. “Trabalho de carpinteiro de segunda a sábado”, apresenta-se um deles. Outro diz ser responsável pela manutenção do prédio e prestar serviços para a prefeitura “das sete às quatro da tarde”. Em meio ao conjunto quase etmológico sobre essa prática reunidos por Lira, as duas falas trazem um dado preciso da dimensão temporal do trabalho e as microidentidades que se formam e se dissolvem no bater do relógio de pontos.
Nathalia Lavigne é jornalista, curadora e pesquisadora, mestre em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela Birkbeck, University of London, e doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. É membro do grupo de pesquisa Estéticas da Memória no Século 21 e desenvolve um trabalho sobre colecionismo digital e imagens de obra de arte no Instagram.