Mestre Didi

Ancestralidade, memória e invenção

A obra artística singular de Mestre Didi emerge de uma série de conhecimentos obtidos no interior do Candomblé Nagô, com o qual ele sempre manteve relação de intimidade profunda. O sagrado mítico permeia a obra do sacerdote-artista, que deixou um legado de mais de uma centena de esculturas.

A categoria arte afro-brasileira que considera a produção de artistas negros é, portanto, contemporânea ao nascimento de Mestre Didi em 1917, tendo se desenvolvido e se tornado mais complexa paralelamente à trajetória do sacerdote-artista. A obra artística singular de Mestre Didi emerge de uma série de conhecimentos obtidos no interior do Candomblé Nagô, com o qual ele sempre manteve relação de intimidade profunda. Sua poética parte desses conhecimentos e o amplia por meio de soluções formais que olham para o mundo mítico africano e afro-brasileiro. É para essa comunidade que ele realiza com exclusividade muitos objetos litúrgicos, antes mesmo de partir, em meados dos anos 1960, também para uma carreira artística pessoal premiada e reconhecida, ainda que, a princípio, não aceita no meio artístico brasileiro senão como arte decorativa.

Iniciado em 1925 dentro da comunidade Nagô baiana, no terreiro Ilê Axé Opó Afonjá, ao sacerdócio do panteão da terra dedicado os deuses Nanã e seus filhos Omolu/Obaluiyê e Oxumaré, foi na condição de Assobá – sumo sacerdote do culto de Omolu – que Mestre Didi aprendeu a fazer objetos emblemáticos como o Xaxará deste orixá e o Ibiri de sua mãe Nanã, ambos feitos com palitos de dendezeiro, com partes cobertas por fatias de couro colorido, búzios, contas e sementes, cabaças, palha da costa. A presença destes e outros materiais orgânicos como o barro, a ráfia e o ferro vai constituir a dupla face de sua persona como sacerdote e artista.

O sagrado mítico, embora seja um assunto presente em toda poética de Mestre Didi, não pode ser confundido com o sagrado do Candomblé. Assim suas obras de arte exibidas em exposições distanciam-se daquelas dedicadas ao uso religioso. Um Xaxará ou Ibiri ritual é antes imantado, ou seja, sacralizado com substâncias que transmitem energia da natureza – axé – como o óleo de dendê, folhas de plantas, mel e, não menos, encantamentos – ofó – que são ditos em forma de rezas para que o objeto atinja a finalidade esperada. Portanto, o que preside um objeto artístico ainda que feito dos mesmos materiais é que ele não tenha sido produzido para ser manipulado em um terreiro, mas contemplado em exposições. Assim uma peça como Sasara Nlá – Grande Xaxará (2000); Eleye N´la – Grande Pássaro Mãe (2007); Opa Aiyê Orun – Cajado da Ancestralidade (1999); Egin Awô – Lança do Mistério (1994) ou Opaejô Merim – Cajado das Quatro Serpentes (1993) jamais se confundem com artefatos religiosos, todavia nos lembrem da beleza plástica desejada e necessária à vivência plena do Candomblé.

Diferentes críticos interessados na produção de Mestre Didi sublinharam o aspecto mitológico de sua obra, cuja fórmula, por ele próprio concebida, de “evoluir sem perder a essência”, forneceu as bases para o desenvolvimento de mais de uma centena de esculturas que nos legou. É possível encontrar em toda extensão de sua obra tanto os materiais característicos de sua posição religiosa já referidos, quanto alguns temas, como serpentes e pássaros. Se a serpente remete a Oxumaré, o pássaro conforma evocações a Oxalá e Ossayn, o primeiro orixá da criação, o segundo orixá detentor de conhecimentos botânicos. Nas mãos de Mestre Didi, a memória ligada à tradição não é apenas repositório. Ela é, antes de tudo, invenção criadora.

Em 2013, ano da morte do Mestre, quando das celebrações de nove anos de existência do Museu Afro Brasil em São Paulo, a instituição fez uma das maiores homenagens a sua memória por meio da mostra O Alapini-Escultor da Ancestralidade Afro-Brasileira. Emanoel Araujo, eterno admirador de sua dupla vida de sacerdote-artista, foi um dos que mais fomentou o reconhecimento de sua obra dentro e fora do Brasil. Ao chamá-lo de Alapini-Escultor, Araujo reafirmou a importância que Didi teve no culto aos ancestrais Egun desde que se iniciou aos oito anos de idade no sacerdócio aos mortos considerados importantes para a sociedade iorubana. Em 1980, com anos de repertório ritual acumulado, Mestre Didi fundou e presidiu a Sociedade Cultural e Religiosa Ilê Asipá de culto aos ancestrais Egun, em Salvador. Atualmente, nesta mesma cidade, estão instaladas obras públicas como O cetro da Ancestralidade (2001), no bairro do Rio Vermelho. Em São Paulo, o parque escultórico da Fundação Cultural e Artística Gilberto Salvador exibe a obra Opa Nilá Bàbá Igi – Grande Cetro do Ancestral das Àrvores (2012).

 

Alexandre Araujo Bispo é antropólogo, crítico, curador independente e educador.

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