Nascido em Comalapa, uma comunidade indígena Kaqchikel, na Guatemala, o artista visual Édgar Calel dedica seu trabalho à sua cultura ancestral a partir de reflexões sobre movimento e transformação. Suas pinturas, vídeos, instalações e performances têm sido exibidos em diferentes locais da América Latina e Europa.
Édgar Calel em cooperação com Fernando Pereira dos Santos, Sueño de Obsidiana, 2020. aprox. 13’, still de vídeo. © Sendero Filmes. Cortesia Édgar Calel e Fernando Pereira dos Santos. Foto: Chico Bahia.
Édgar Calel em cooperação com Fernando Pereira dos Santos, Sueño de Obsidiana, 2020. aprox. 13’, still de vídeo. © Sendero Filmes. Cortesia Édgar Calel e Fernando Pereira dos Santos. Foto: Chico Bahia
Édgar Calel é um artista visual originário do povo maia kaqchikel de San Juan Comalapa, uma cidade de 40 mil pessoas no departamento de Chimaltenango, na Guatemala. Lá ele vive e trabalha, quando não está envolvido com viagens, residências artísticas ou exibições de suas obras em diferentes lugares. Através de várias linguagens, que incluem a pintura, a instalação e a performance, Calel foca seu trabalho na ideia de deslocamento e na maneira como ele transforma a memória e a cultura.
O artista falou com a Contemporary And América Latina durante uma residência no Brasil, onde a pandemia do coronavírus o forçou a se confinar e a criar, através de materiais locais, a obra que irá expor na Bienal de Arte Contemporânea de Berlim entre 5 de setembro e 1º de novembro.
C&AL: Poderia falar sobre suas origens e sua trajetória como artista?
Édgar Calel: Nasci a 80 quilômetros da Cidade da Guatemala, em Comalapa, um lugar cheio de referências à arte e à história do país. Cresci entre pessoas criativas – meu pai é pintor e minha mãe faz tecidos à mão –, e com um vínculo com o legado dos maias kaqchikel. Em um determinado momento, no entanto, percebi que precisava melhorar minha técnica de pintura, e adquirir uma visão mais profunda da arte. Entrei, então, em 2005, para a Escola Nacional de Artes Plásticas Rafael Rodríguez Padilla. A Escola fica na Cidade da Guatemala e isso me forçou a viajar todos os dias de ônibus, duas horas de ida e duas horas de volta. Eu me tornei um observador e aproveitei meu tempo para caminhar, visitar museus e observar as pessoas. Comecei, então, minha vida como artista: ganhei uma bolsa de estudos, saí do país e fui a muitos lugares. Mas essa experiência na minha aldeia e aquelas viagens como estudante me moldaram decisivamente.
C&AL: Como essa história explica seu interesse pelo movimento e pelo deslocamento?
EC: Quando você revisa a história da arte de um país, você encontra pouco envolvimento da comunidade. Assim, eu sempre quis que meu trabalho estivesse relacionado com o lugar onde nasci e onde meu corpo aprendeu a vibrar no mundo. Eu carrego uma cultura. Mas, agora que viajo tanto, me pergunto: onde fica minha cultura quando não estou naquele lugar? Ela permanece no corpo, atravessado pelo que vivemos, e permanece na memória, onde transformamos a cultura e a reproduzimos. Para mim, o deslocamento não é apenas físico. Viajar me permitiu conhecer pensamentos e artes e conhecer as ideias dos Guarani, assim como conheço as do Kaqchikeles. Através desse conceito de movimento, é possível estabelecer uma sincronia entre os conhecimentos do mundo. O deslocamento é, em outras palavras, reconhecer continuamente o meu ser em lugares diferentes.
C&AL: Como essas reflexões se manifestam em sua arte?
EC: A arte, para mim, é um espaço de trânsito, é um aeroporto cheio de pessoas, destinos e origens. Enquanto viajo, participo, então, dos espaços nos quais a cultura circula. A mim custou muito entender a necessidade de compartilhar arte. Porém, só assim descobri, por exemplo, que no meu trabalho há uma parte que é oralidade vinculada à manifestação do corpo. Assim, a poesia e a ação performática encontraram um lugar na minha arte e revelaram riquezas úteis para descobrir o que eu queria. Não sei se é uma técnica, mas a mim parece sobretudo um impulso de se fazer. Alguns dias atrás, por exemplo, senti esse impulso e acabei fazendo uma instalação. Eu me perguntava: onde está a poesia dentro de mim, e dentro das minhas roupas? Me ocorreu então que a poesia poderia estar nos bolsos vazios das minhas calças, e decidi que este seria o meu trabalho: escrevi algumas poesias nos bolsos das minhas calças e expus os bolsos voltados para fora. É assim que vou construindo imagens. As pessoas se reconhecem nos símbolos e assim todos nós nos entramos em uma dimensão íntima.
C&AL: Como é representada em sua obra essa oralidade que você menciona?
EC: Vou te contar outra história: nessa manhã, escrevi um poema no idioma Kaqchikel. Ele diz: Ta tz’isa ri nu q’aq’ rik’in ri a chub. A tradução é: “costure meu fogo com sua saliva”. É um jogo de palavras. Quando você o traduz, você o recria, e talvez o leve para mais perto de uma imagem original ou da imagem criada nesse novo idioma. Isso é um deslocamento e uma maneira de enriquecer a vida. Por não estar preso a nenhum meio específico, posso me permitir experimentar essas coisas.
C&AL: Que valor teve para você a experiência da Bienal de Berlim?
EC: Sinto-me portador de uma responsabilidade, pois represento uma parte da população guatemalteca em um evento global. No ano passado fui a Berlim pela primeira vez, para participar de uma oficina e mostrar trabalhos. Foi importante, porque tive que prestar atenção nos detalhes, com a finalidade de transmitir fielmente o que eu tinha querido pensar. Trabalhei constantemente com curadores e produtores, e isso me marcou, porque foi como o trabalho de uma máquina que se retroalimenta para compreender o que faz: compartilhei coisas que se tornaram perguntas, que se tornaram reflexões, que se tornaram novas perguntas, e acabaram transformando o artista e a obra. O resultado é que, depois dessa viagem, estou preparando três obras para a Bienal: um vídeo, 38 desenhos, um suéter e duas fotografias. São diferentes no que se refere aos meios utilizados, mas conceitualmente são todos unidos no questionamento.
A ideia era voltar para Berlim e passar lá 15 dias, mas a Covid-19 não me permite fazê-lo. É por isso que esse trabalho que estou produzindo gira em torno de sonhos que venho desenhando com a ajuda de papel bond e carvão de churrasco, materiais que encontro facilmente no Brasil – onde fiquei encalhado devido ao vírus – e que me agradam. Como não posso ir a Berlim, encontro nesses materiais o lugar de trânsito que procuro para completar meu trabalho. Se eu tivesse podido ir a Berlim, a obra teria sido diferente. Então, que bom que a vida vá nos ensinando a construir com o que temos à mão. Esses gestos levam a um caminho de humildade.
C&AL: Como eventos globais atuais, como a pandemia, afetaram seu trabalho?
EC: É muito complexo, mas ao mesmo tempo é interessante. Este ano eu tinha a expectativa de ir a Londres, Berlim e Canadá. De repente, tudo estava fechado. Você diz: O que está acontecendo conosco? O que é a pandemia? Para mim, na realidade, muitas coisas continuaram a acontecer, mas de outra forma. Eu digo: enquanto houver mais projetos, em escalas internacionais e de deslocamento, então se aplacam os desejos. Mas meu sonho é trabalhar em torno da terra da minha família, e talvez por isso a pandemia me afete menos. A pandemia está longe daquele lugar, e estou mais perto: dos meus antepassados, da minha comida, do calendário antigo, dos donos do tempo. A pandemia veio para nos ajudar a não pensar muito longe, a não projetar demais. A vida é agora e não tanto no futuro.
Camilo Jiménez Santofimio é jornalista e editor colombiano. Foi diretor e gestor de diferentes mídias e projetos culturais.
Tradução: Cláudio Andrade