Em sua participação na 23ª Bienal de Arte Paiz, Guerrier propõe uma compreensão de geografia que integra uma disciplina mais ampla, preocupada com história, linguagem e o corpo através da técnica da colagem. Para o artista, isso significa justapor o que traz em sua “bolsa de memórias” para dar forma a materialidades, subjetividades e desejos.
Detalhe de Adler Guerrier, “Sem título” (Field Guide–exposure to enchanted forms)”, 2022-2023. Grafite, lápis de cor, vinil cortado, tinta de esmalte e colagem em uma impressão com máquina Xerox Versant 80 em papel Mohawk Superfine. 18,5 x 12 polegadas. Cortesia do artista.
A cidade de Miami tem seu nome derivado dos Mayaimi, um povo nativo americano que vivia em torno do Lago Okeechobee até a década de 1760, quando a Grã-Bretanha tomou o controle da Flórida. Os Mayaimi viviam do lago, muitas vezes sobrevivendo apenas dos peixes durante a estação das águas altas. Hoje, a poluição das águas pluviais e a proliferação de algas alimentadas pelo escoamento de fertilizantes transformaram os canais de drenagem do Lago Okeechobee em um dos mais poluídos dos Estados Unidos. O colonialismo formou nações dentro de um contexto de extração capitalista, uma elaboração que desprezava o modo como uma população indígena poderia valorizar um lugar. Sob o controle sombrio do capital, os múltiplos imaginários em um local e suas consequências sobre a linguagem em relação a um território são ignorados. Como podemos aproveitar os poderes do encantamento para reconfigurar nossa compreensão dessas geografias?
Nascido no Haiti e radicado em Miami, o artista Adler Guerrier atua em um espaço formativo de jogo, ao qual se refere em uma conversa como “o reino do imaginário, dos sonhos”. Um reino não ditado pelas restrições daquilo que compartilhamos corporalmente. Neste reino, a história permanece, mas não o rigor da ordem convencional. “Para mim, este é um reino frutífero”, exclama. “Uso a palavra encantado para descrevê-lo, um termo que tomei emprestado da novela Tar Baby, de Toni Morrison. Em Tar Baby, uma mulher parcialmente cega leva um personagem chamado Son a um lugar onde ninguém vive para ser influenciado, em suma, por seres encantados. Este é um exemplo de como os sonhos e as geografias nos transfiguram. Dentro deles há um espaço para um imaginário para dentro do qual podemos deslizar. Um reino em que verde e amarelo tornam-se mais do que verde e amarelo, pois carregam algumas incógnitas. Onde uma doce melodia torna-se um recipiente que nos pode levar a um outro lugar.”
Observando o estúdio do artista através de minha tela enquanto ali se movimenta, encontro obras que abrangem várias mídias. No entanto, nossa conversa se concentra em Field Guide – exposure to enchanted forms (2022), uma coleção de trabalhos de colagem feitos a partir de imagens fotográficas do Haiti, de Cuba e Miami. As obras serão exibidas na 23ª Bienal de Arte Paiz (13 a 30 de julho), na Guatemala, intitulados I drank words submerged in dreams (Bebi palavras submergidas em sonhos) – verso do livro Nací Mujer, da poetisa guatemalteca Maya Cū. A bienal deste ano baseia-se nas práticas de Margarita Azurdia, Ana Mendieta, Fina Miralles, Maria Terezha Negreiros e Cecilia Vicuña. Ela se aprofunda em territórios poéticos, políticos e oníricos nos quais materialidades, subjetividades e desejos tomam forma.
Os temas da bienal coincidem com o entendimento de Guerrier sobre geografia enquanto parte de uma disciplina mais ampla relacionada à história, à linguagem e ao corpo. Uma disciplina que reconsidera noções de Estado, levando em conta entendimentos em nível de comunidade e identificações de terrenos. Essa visão de geografia faz interseção com definições fluidas do campo, considerando a linguagem diaspórica, que frequentemente se refere a uma noção ampliada de território, existente em vários continentes. “É simplesmente uma geografia reconstituída”, afirma Guerrier. “Uma geografia reconstituída que, para mim, serve à criação de colagens. Trata-se de adjacência e justaposição, é um layout ou arranjo daquilo que você traz em sua bolsa de memórias.”
Adler Guerrier, “Sem título” (Field Guide–exposure to enchanted forms)”, 2022-2023. Grafite, lápis de cor, vinil cortado, tinta de esmalte e colagem em uma impressão com máquina Xerox Versant 80 em papel Mohawk Superfine. 18,5 x 12 polegadas. Cortesia da artista.
É simplesmente uma geografia reconstituída. Uma geografia reconstituída que, para mim, serve à criação de colagens. Trata-se de adjacência e justaposição, é um layout ou arranjo daquilo que você traz em sua bolsa de memórias.
Em Field Guide, Guerrier luta com esses pontos de partida, explorando-os através de formas encantadas existentes e linguagem diaspórica. As obras consistem em grafite, guache, vinil cortado, tinta de esmalte e impressão com máquina Xerox Versant 80 em papel Mohawk Superfine. Elas apresentam uma paleta de oito formas que se repetem na obra do artista. “O que aprecio ao usar essas estruturas moleculares, essas formas agrupadas, é a baixa probabilidade de fazer o mesmo trabalho duas vezes, porque as permutações ao se colocar oito coisas juntas são muito altas. Essa é a riqueza desta linguagem de formas conjugadas. Ela sugere possibilidades de novidade e complexidades derivadas de um vernáculo próprio dessa geografia reconstituída.”
Uma paleta de cores também é recorrente nos trabalhos. A repetição aqui toma uma qualidade metafísica, que alude às recordações do artista das reuniões familiares e da narração de histórias a elas associadas. “Há uma formalidade que às vezes uma expressão assume, e essa forma específica pode se tornar preciosa”, diz. “O quintal da casa de meus pais tem sido um lugar para falar sobre o presente e muito sobre o passado. Um passado que às vezes acontece na zona rural do Haiti, em nossa realidade de Miami e em outros pontos temporais entre um e outro. Como membros de uma diáspora, múltipla, na verdade, as histórias fazem parte de nossa herança. Elas formam um conhecimento que é corporificado e nos faz sentir mais completos. Quando viajamos de volta para nossas terras natais, coletamos fragmentos e retornamos com um pouco mais de conhecimento, que é expresso sobretudo através da linguagem. Essa é uma maneira como a linguagem aparece em meus trabalhos. É uma busca por pontos em um mapa e em um espaço psíquico compartilhado que organizo para estar mais próximo.”
Field Guide pode ser entendido como uma pessoa sem nome e sem corpo, um conjunto de configurações que sugerem uma familiaridade inconsciente e um guia para conhecimentos poéticos indígenas e diaspóricos encantados. Um sentido de unidade transnacional perpassa essas obras, uma unidade enraizada em uma compreensão das complexidades contemporâneas e históricas da geografia.
Adler Guerrier é um artista nascido no Haiti e radicado em Miami. Recorre à natureza democratizante da colagem para explorar construções de raça, classe e cultura ao longo do tempo. Guerrier obteve um BFA (Bacharelado em Belas Artes) na New World School of the Arts.
Elisha Tawe é escritor, cineasta e cofundador do duo criativo GRAY417C. Atualmente está radicado em Londres. Instagram.
Tradução: Marie Leão