Poucos conceitos falam sobre o pessoal tanto como fator político quanto como ideias relacionadas a “lar” e a “pertencimento”. Desde o lar como lugar de arte até a cidade como lugar em que todos podem ser um estrangeiro em potencial, esta série inclui textos que exploram como artistas e curadores revelam e ressignificam, através da arte, temas como arquitetura, domesticidade com base no gênero, cidadania e espiritualidade. O fotógrafo Amine Oulmakki nos convida a uma busca existencial articulada em torno da imagem, da história e da memória. Elsa Guily conversou com o artista sobre seu trabalho “OXYGÈNE”.
Amine Oulmakki, OXYGENE. Projeto de videoinstalação, 10'56", 2015. Cortesia do artista.
Amine Oulmakki, OXYGENE, Projeto de videoinstalação, 10’56", 2015. Cortesia do artista.
Contemporary And: Sua videoinstalação é intitulada oxygène (oxigênio), e a projeção mostra mulheres nuas em uma banheira. Há uma relação entre o título e os temas filmados?
Amine Oulmakki: Oxigênio é vital para o fluxo de energia no corpo. Quis trabalhar com amigas que são envolvidas com arte e me juntar a elas no questionamento de como reduzir a pressão a que estão sujeitas como mulheres em seu trabalho. Assim, o ponto de partida foi esse exercício de inibir essa energia, essa pressão exercida pela sociedade, e a tentativa de se libertar. Havia duas instruções: não fale – só embaixo d’água – e fique consigo mesma, sem se externalizar para o olhar da outra pessoa. A instalação tridimensional da banheira acompanhando a projeção do vídeo questiona nossa percepção da água como metáfora do nosso próprio ciclo de existência.
C&: Os olhares subaquáticos definem a câmera: uma representação que coloca os temas que você filmou de volta à superfície da imagem, e não na profundidade de sua interioridade. É possível ser verdadeiramente quem se é diante da câmera?
AO: Aqueles olhares muito penetrantes são o que chamo de “olhares que rompem o véu da imagem”. Se você tenta apresentar uma imagem de si mesmo na câmera, ela se torna uma ficção, como em uma adaptação de si mesmo. A imagem, enquanto representação, tem sempre uma certa ficcionalidade, visto que toda representação emerge de uma subjetividade que por sua vez é construída sobre ficções.
C&: Você trabalha em preto e branco, o que dá às imagens um contraste muito denso. O preto e branco implica a narrativa em uma confusão temporal?
AO: Sempre trabalhei em preto e branco, seja em fotografia, seja em vídeo. A imagem é um momento que foi vivido. O tempo está contido na imagem. Para mim, fotografia é sempre associada àquela ideia do tempo no passado. De fato, vejo todas as minhas memórias em preto e branco. A imagem realmente possui aquela qualidade de tornar a realidade visível em um absoluto? Para mim, a imagem em preto e branco também evoca uma imaginação de cor a ser interpretada a partir da história de quem vê. Não transmito a realidade, articulo algo entre emoção, a imagem real e a imagem ficcional. Utilizar preto e branco, então, me permite separar a imagem de ser tomada como prova, de justificar o que é real.
C&: O olhar não é a única forma de percepção sensorial suscitada pela sua instalação: a audição se faz também bem presente, e, até certo ponto, o toque, com aquela noção de materialidade, de água. Segundo sua perspectiva, é possível sentir uma imagem, experienciá-la de uma forma que não seja pela visão?
AO: Quando eu era criança, meu pai me contou um conto popular das Mil e Uma Noites. Ele é professor de educação islâmica. Aquilo cultivou em mim um repositório de imagens que criei para mim mesmo sem nunca tê-las visto, só ouvindo falar delas. Quando converso com as pessoas, não vejo nada que não sejam imagens. Depois das minhas provas do ensino médio, que foram bem medíocres, só havia uma coisa que eu queria fazer: entender a imagem e explorá-la! E foi assim que comecei com vídeo. Hoje em dia meu objetivo é contrariar a percepção visual, abarcando a presença do corpo para além da tela bidimensional.
C&: Para você, então, as histórias são um importante canal de transmissão e comunicação, de criação de imagens?
AO: Sim, elas são muito presentes no mundo árabe porque muitas práticas culturais árabes se baseiam no discurso e não na imagem. Isso dá origem a um mundo imaginativo onde todos podem ser criativos e não ficar presos a imagens estagnadas. Na minha primeira viagem à França, fui dominado pela abundância de publicidade pictórica no espaço público. A cultura pictórica no mundo árabe é muito conectada à contação de histórias – e é isso que faz a imaginação fluir. Se eu tiver filhos gostaria de criá-los com um rádio e histórias gravadas para poder tocá-las quando quiser. Dessa forma eles poderiam inventar seu próprio mundo visual e não sentir essa imposição vinda de fora. Imagens demais impõem uma visão de mundo. Descobrir como compreender e produzir a imagem enquanto se desenvolve uma história pessoal – este é o ponto central da minha prática artística. É um processo lento, como assistir a água fluir ao longo da fenda do tempo.
C&: Então a arte é uma metáfora entre a existência enraizada no local que está sempre incorporada em uma dualidade com o globalismo…
AO: A arte não tem nem fronteiras nem limites. Ela pode ser compartilhada em todo o mundo. Tenho muito interesse nessa troca que a arte cria por meio dos encontros de culturas, percebendo e imaginando coisas de um modo diferente do que faríamos em relação ao nosso próprio espaço cultural. A meu ver, é assim que a arte pode despertar a possibilidade de criar identidades individuais para todos, ligadas às especificidades de nossas raízes. Ter uma âncora na especificidade do ser é o que dá à arte uma dimensão universal, como um meio para comunicar sobre as profundidades do ser humano.
Elsa Guily estudou História da Arte e é crítica independente de arte. Ela mora em Berlim e tem enfoque na interseção entre práticas decoloniais, teoria crítica e representações visuais.
Traduzido do inglês por Raphael Daibert.