Venuca Evanán é uma artista de Lima que está revitalizando a tradição das tábuas de Sarhua, uma antiga prática artística de Aiacucho, adaptando materiais modernos e explorando novos temas como o erotismo. Junto com um coletivo, a artista dá visibilidade às vítimas da repressão do governo e promove o equilíbrio de gênero.
Rikchari Warmi / Despierta mujer / versión extendida (Rikchari Warmi / Desperta mulher / versão estendida), pintura acrílica sobre varas silvestres de madeira, medidas variáveis, 2019 - 2020. Foto: Victor Idrogo|ICONICA
Retrato de Venuca na Galería ICPNA Miraflores, 2022. Foto: Victor Idrogo|ICONICA
C& América Latina: Seu trabalho reexamina e cultiva a antiga técnica artística das tábuas de Sarhua, uma localidade situada em Aiacucho, no Peru. Você poderia nos contar sobre as origens das tábuas e como suas histórias mudaram até a atualidade?
Venuca Evanán: As tábuas de Sarhua vêm do departamento de Aiacucho, na província de Víctor Fajardo. A cerimônia se chama Tábua Apaycuy, que significa “entrega da tábua”, pois elas são dadas de presente para a construção de uma casa. Não se sabe exatamente quando começaram a ser feitas, mas foram encontradas tábuas do século XIX. Seu tamanho original varia de dois a quatro metros de comprimento, sendo elas feitas de troncos silvestres, nos quais se registra a família que as recebe de presente. A leitura visual é feita de baixo para cima. Começa pela dedicatória, continua com a Virgem da Assunção, daí vêm os proprietários da casa, sua família imediata e, no topo, a família extensa. Imagine que você é da comunidade e se casou. Ajudaram a construir sua casa e você escolhe o compadre que lhe dá a tábua de presente. Em seguida, você a coloca em um local privado onde somente você e seu par podem entrar. É por isso que as tábuas foram mantidas escondidas por muitos anos. Se você for uma pessoa muito sociável, poderá receber até quatro tábuas. Mas, se não for, provavelmente receberá apenas uma.
Meu pai, Primitivo Evanán, e meu tio por parte de mãe, Víctor Yucra, foram os que começaram a pintar as tábuas de Sarhua em Lima. Meu pai me conta que, como sempre, os migrantes voltavam da cidade para suas comunidades nos feriados para se reencontrar com amigos e familiares. Em uma dessas viagens, ele conheceu o intelectual Salvador Palomino, que o motivou a pintar suas próprias tábuas. Foi assim que, junto com meu tio, eles realizaram sua primeira exposição para os sarhuinos que moravam em Lima. Mais tarde, e graças à ajuda do galerista Raúl Apesteguía, realizaram sua primeira mostra de tabuões originais no centro da cidade. Na segunda, começaram a mudar os formatos, os temas e os materiais. Originalmente, os materiais eram pigmentos minerais, mas eles se adaptaram aos materiais da capital e começaram a usar lápis de cor, marcadores, anilina e tintas acrílicas. Também começaram a pintar quadros e a registrar costumes do interior, contos, mitos, lendas, festividades, migração interna, bem como eventos políticos do país.
Retrato de Venuca na Galería ICPNA Miraflores, 2022. Foto: Victor Idrogo | ICONICA
C&AL: Neste momento, o Peru está passando por uma crise social e política. De fato, tivemos que adiar a entrevista devido a uma paralização nacional. Em sua obra há um reconhecimento da mulher indígena* e sua relevância no âmbito social, cultural e político. Como essa perspectiva indígena e feminista se entrelaça com seu processo criativo?
VE: Essa situação (a crise política do Peru) começou em dezembro, e nós filhos de camponeses, que temos nossa identidade mais profundamente arraigada em nossas comunidades, fomos muito afetados. Pessoalmente, isso me bloqueou bastante e fiquei assustada ao ver a maneira como maltratam a população. Matavam gente apenas por protestar contra o governo. Além disso, o Estado promove um discurso que nos representa como vândalos e terroristas. Como vou falar de feminismo, de empoderamento se o Estado me aterroriza? Eles (o governo) dizem que buscam a democracia, mas isso é totalmente falso. Não se pode impor a democracia.
Então o que fizemos foi juntar as amigas para criar o coletivo Retablos por la Memoria (Retábulos pela Memória). Isso aconteceu a partir do momento em que começaram a matar pessoas em Aiacucho, uma localidade historicamente oprimida. Foi como se uma ferida, que estava cicatrizando, estivesse de repente sendo reaberta. Canalizamos essa dor apoiando o protesto, saindo para as marchas e através da arte. Tomamos os retábulos de Huamanga como referência, e a primeira coisa que fizemos foi dar visibilidade às vítimas do governo. Logo se juntaram mais garotas, e fizemos faixas nas quais os participantes das marchas podiam escrever suas denúncias, suas petições e seu clamor. Toda a frustração e a dor se canalizava pelo corpo.
Voltando à parte da pergunta relacionada ao feminismo, comecei a pintar em 2018. No ambiente em que meu pai se movia, sempre diziam “Primitivo Evanán e sua filha”. Eu não gostava disso. Tenho um nome, um talento, minhas propostas e ideias. Pouco a pouco, fui buscando ser reconhecida pelo que sou e não por ser filha de alguém. E foi assim que comecei a pintar minhas obras, refletir minhas vivências, meu entorno e meus próprios interesses. Parecia-me injusto, ainda mais nestes tempos, não haver a presença de nenhuma mulher, quando eu lia livros sobre história da arte. Mas, na realidade, eu podia ver que havia e há mulheres criando, então comecei a conversar com historiadoras da arte e a formar equipes. Fui fazendo meu caminho com a pintura e experimentando com outras mídias. Também queria aprender a fazer murais, ilustrar, usar tecidos e fazer arte conceitual. Tudo o que fluísse e brotasse de minhas inquietações.
*Venuca prefere se autodefinir como alguém proveniente de uma comunidade, já que o termo “indígena” pode ter caráter discriminatório e depreciativo no contexto peruano.
Las Varayuq (As Varayuq), pintura acrílica e têxtil de fita de saia sobre madeira MDF, 2019. Foto: Cortesia da artista
Como vou falar de feminismo, de empoderamento se o Estado me aterroriza? Eles (o governo) dizem que buscam a democracia, mas isso é totalmente falso. Não se pode impor a democracia.
C&AL: Você nasceu e cresceu em Lima, cidade em que vive atualmente. Como isso influenciou sua relação com o território e a cultura sarhuína?
VE: Meus pais emigraram para a capital em 1957, mas sempre tivemos uma conexão com a comunidade. Em Lima, eles criaram um espaço para formação e divulgação da arte sarhuína. Formei-me ali, sentava-me com meu pai e minha mãe em uma mesinha para pintar e conversar. Aprendi a usar as cores, a pluma e, de tempos em tempos, eles me levavam para a comunidade. Minha mãe me teve quando tinha 42 anos, e conta que se sentava e pintava quando estava grávida de mim. Esse foi o início do meu amor pela arte de Sarhua. Embora eu tenha crescido na capital, meu mundo sempre foi a arte, as tábuas de Sarhua e a cultura sarhuína.
Crescer em Lima me influenciou e é precisamente daí que vêm minhas novas propostas. Por um tempo, fui representada por uma galeria em Lima e comecei a entrar em contato com outros artistas. Aprendi a ver e a ouvir propostas contemporâneas que me inspiraram. Participei de treinamentos de ONGs sobre mulheres, empoderamento e fiz um curso sobre feminismo. Tudo vai confluindo em meu pensamento e em minha pessoa. Isso tem me ajudado a reformular questões, mas sem me afastar de minhas origens.
Vou à comunidade para visitar parentes e ministrar oficinas para crianças. Estive lá recentemente para a festa da água, chamada de Bênção da Água. A maneira como a comunidade pensa sobre a natureza é diferente. Você se sente parte dos elementos. Ademais, a comunidade ainda persiste e resiste em seu idioma quéchua. Eles resistem em seus trajes, sua arte e em assumir suas funções por amor ao povo e a seus costumes. Sinto-me muito orgulhosa por vir desse território. Além disso, um de meus desafios é aprender quéchua fluentemente. Quero que minha filha aprenda também para que não se esqueça de seu idioma.
Da mesma maneira, questiono por que as mulheres ainda não assumiram funções na comunidade. Noventa por cento das autoridades ainda são homens. Acredito que, para melhorar, homens e mulheres precisam ouvir uns aos outros. Cada um tem seu pensamento e sua perspectiva. Se ambos se escutarem, será possível encontrar um equilíbrio. Embora todos me desafiem e digam que não posso, eventualmente, quero assumir uma função e ir morar ali por um ano.
Añachallaw / Mi autorretrato erótico (Añachallaw / Meu autorrerato erótico), óleo sobre tela, 100 x 110 cm, 2023. Foto: Victor Idrogo | ICONICA
C&AL: No que você está trabalhando agora e que projetos tem para o futuro?
VE: As portas começaram a se abrir por aí afora e isso me alegra muito e motiva a ser produtiva. Atualmente estou trabalhando em uma exposição no Instituto de Visión, na Colômbia. Recentemente chegamos a um acordo para trabalhar com uma galeria em Madri chamada Enhorabuena. Também vou participar, com Sandra Gamarra, da Bienal de Cuenca, no Equador. E, no próximo ano, estaremos no Chile e em Nova York. Estou feliz por continuar circulando e tornando meu trabalho visível enquanto artista mulher com herança própria da minha comunidade.
Agora estou pintando sobre o erotismo andino, explorando tecidos e outras mídias. Com Sandra, vamos trabalhar sobre a democratização a partir do ponto de vista da comunidade e temas da visibilização da mulher. Conversamos sobre como abordar a situação política no Peru. De minha parte, vou tratar do assunto através das tábuas de Sarhua, e Sandra, a partir de sua proposta pessoal.
Venuca Evanán (Lima, 1987) é artista visual, ativista e educadora. Herdeira das expressões artísticas da comunidade de Sarhua, na região de Aiacucho, no sul do Peru, especializou-se em pintura com pigmentos minerais e plumas de pássaros.
Tradução: Marie Leão