O historiador de arte Gürsoy Doğtaş analisa os desequilíbrios de poder entre Warhol e as pessoas queer não brancas que retratou na Baixa Manhattan
Marsha P.Johnson (esquerda) e Sylvia Rivera (direita) na Parada do Orgulho Gay, 1973. Foto: Leonard Fink. Do filme “A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson”, Netflix, 2017. Cortesia Netflix.
Olhando para trás, o artista Glenn Ligon se pergunta se Andy Warhol conhecia alguma pessoa afro-americana comum. Dirigindo seu telescópio para a órbita de Warhol, ele encontra celebridades legendárias como Michael Jackson, Diana Ross e Jean-Michel Basquiat – mas nenhuma pessoa negra comum. Ele reajusta, então, seu telescópio para encontrar “superestrelas” negras da Factory de Warhol. Entre Edie Sedgwick, Nico e muitas outras, ele encontra uma única mulher negra: Dorothy Dean. Ela estrelou vários filmes de Warhol e era sem dúvida glamourosa, diz Ligon – embora ele não conheça ninguém que a chamaria de “superestrela”.
Sobre esse pano de fundo, Ligon cita uma colocação de Warhol durante uma entrevista coletiva em Ferrara, uma cidade no norte da Itália. É 1975, e Warhol está abrindo sua exposição Ladies and Gentlemen no Palazzo dei Diamanti. Todos os 105 trabalhos expostos – alguns deles em grande formato – retratam 14 diferentes drag queens ou mulheres trans. As pessoas retratadas são afro-americanas ou pessoas não brancas da Baixa Manhattan. Warhol montou as Polaroids de suas retratadas em silkscreen e, adicionalmente, pintou à mão as fotos ampliadas com cores extremamente luminosas, às vezes com camadas espessas de cor. Como Warhol disse aos jornalistas presentes, ele encontrava com frequência as pessoas retratadas em Nova York; elas eram suas amigas, disse o artista. Ligon lança dúvidas sobre a veracidade dessa afirmação e é confirmado pelo abrangente catálogo raisonné das obras de Warhol. Warhol retrata as pessoas como ícones de Hollywood, mas retém seus nomes. Elas não são sequer mencionadas nos títulos das pinturas de Warhol em que elas próprias são retratadas, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com a série de Marilyn Monroe (embora neste caso a fama da pessoa retratada teria presumivelmente tornado redundante qualquer outro título).
Embora Warhol afirme ter tido amizade com as modelos, ele ao mesmo tempo as torna anônimas. Tais contradições se repetem em todos os estágios do desenvolvimento de Ladies and Gentlemen, desde a criação da série até sua circulação e sua reavaliação em museus após a morte de Warhol. Elas articulam uma discriminação estrutural dentro do mundo da arte, bem como o racismo dentro da cena queer.
Vista da instalação, Andy Warhol Now, Museum Ludwig, Colônia 2020, © 2021 The Andy Warhol Foundation for the Visual Arts, Inc., licenciada pela Artists Rights Society (ARS), Nova York, foto: Rheinisches Bildarchiv Köln, Colônia/ Marleen Scholten. (À frente à direita: Marsha P. Johnson; atrás à esquerda: Wilhelmina Ross)
Em 1974, o marchand Luciano Anselmino, de Turim, encomendou essa série a Warhol. Seu título, Ladies and Gentlemen, com associações de teatro e show business, também teve origem em Anselmino. Anselmino e Warhol tinham motivações diferentes para escolher drag queens e mulheres trans supostamente sem fama (eles usavam o agora incomum termo em inglês transvestite). Curiosamente, Anselmino acreditava que tal forma de anonimato estava de acordo com a ética de trabalho original de Warhol. No entanto, nem as “superestrelas” de Warhol, nem suas obras anteriores, como as caixas Brillo, tinham conseguido prescindir de um nome (de marca) – seja como sujeito ou no título da obra. Warhol, por outro lado, não podia ou não gostava de trabalhar com as celebridades trans da Factory. Por um lado, porque Candy Darling tinha morrido no início do mesmo ano, por outro, porque estava irritado com Jackie Curtis e Holly Woodlawn querendo uma parte dos lucros que ele obteve usando suas imagens.
Warhol, então, encarregou três de seus assistentes – aos quais entregou 75 dólares cada – para recrutar drag queens e mulheres trans que ele próprio não conhecia. A fim de manter os honorários das pessoas que ele fotografava um pouco sob controle, Warhol pediu a seus assistentes que não mencionassem seu nome às modelos em potencial. Dependendo da duração da sessão, ele pagou às 14 modelos uma taxa única de 50 ou 100 dólares. A título de comparação: com a encomenda total de 105 quadros, Warhol ganhou cerca de 1 milhão de dólares, o que significa que ele deu às modelos uma participação em sua renda de cerca de 0,01% para cada. No entanto, esse cálculo não está nem perto de ser concluído: entre todas as séries da obra de Warhol, Ladies and Gentlemen é uma das mais extensas. Acabou abarcando 268 pinturas, cerca de 65 desenhos e colagens, e uma edição de 10 gravuras. Foi o anonimato das modelos que fez de Ladies and Gentlemen um negócio particularmente lucrativo para Warhol. Se as modelos, no entanto, estavam esperando uma “mais-valia” da Factory por seus esforços, essa esperança não se cumpriu. Muitas delas passaram suas vidas inteiras em condições precárias. Assim, Warhol não só reproduziu a distinção quanto ao valor entre as “superestrelas” de sua Factory e a periferia extrema da cultura do entretenimento, como também soube lucrar unilateralmente com os impiedosos mecanismos de exploração econômica do mercado. Mecanismos estes que operam, então como agora, ao longo das divisões de raça e de classe.
Entre as modelos que Warhol manteve nessa relação tóxica – prometendo-lhes fama enquanto negava a elas suas próprias imagens – estavam grandes revolucionárias da revolta de Stonewall de 1969, como Marsha P. Johnson. Seu falso reconhecimento como modelos “anônimas” revela a extensão da ignorância de Warhol. Isso toca um dos pontos cegos da narrativa histórica de Stonewall: durante décadas, sua representação e análise não conseguiu nomear a etnia das insurgentes, tornando-as assim invisíveis. Com essa deturpação, a comunidade de brancos queer privou figuras como Marsha P. Johnson de um reconhecimento adequado por sua contribuição histórica à libertação gay. Ao mesmo tempo, a narrativa histórica branca sobre Stonewall separou a revolta dos conflitos étnicos que caracterizaram os anos 1960 do movimento de direitos civis que lutava tanto contra a violência policial racista quanto contra a cobertura fanática da imprensa, e que politizou Marsha P. Johnson, entre muitas outras e muitos outros. Junto com Sylvia Rivera, outra grande mulher trans da revolta de Stonewall e lutadora da linha de frente, ela foi uma das lideranças do Movimento de Libertação Gay. Juntas, elas fundaram o grupo STAR (Street Transvestite Action Revolutionaries – Ação das Travestis de Rua Revolucionárias) em 1970, que forneceu abrigo para o grupo mais vulnerável de jovens transgêneros sem-teto e que se revelaria pioneiro, pensando em retrospectiva. Por necessidade, muitas dessas jovens buscavam ganhar dinheiro por meio de trabalho sexual.
O fato de Andy Warhol ter omitido o nome de Marsha P. Johnson em Ladies and Gentlemen perpetua a despolitização das diferenças e dos antagonismos heterossociais ao longo das linhas divisórias de etnia e gênero nos primeiros dias do movimento LGBT de Nova York. Neste contexto, parece cínico quando, hoje, Warhol, a “lenda”, é popularmente celebrado como um artista queer e assim, postumamente, mais uma vez se beneficia de Ladies and Gentlemen, mas desta vez na forma de capital politicamente simbólico abstraído de um período formativo na história cultural LGBT.
Foi somente cerca de 45 anos depois de terem sido escolhidas para a série Warhol que aquelas retratadas em Ladies and Gentlemen – exceto uma pessoa – puderam ter seus nomes assinalados; onde disponíveis, as informações biográficas agora também foram fornecidas. Isso foi por volta da mesma época em que, para citar apenas um exemplo, a historiadora de arte Denise Murrell descobriu a identidade da empregada negra em Olympia (1865), de Édouard Manet. Até então, a história da arte branca não tinha tido interesse suficiente por Laure, como era seu primeiro nome (sobrenome desconhecido). Como um ponto a favor do trabalho de Warhol, pode-se dizer que Ladies and Gentlemen não precisou de 150 anos para fazer tal atribuição. Mas pode-se dizer igualmente que, apesar dos séculos de luta emancipatória, os efeitos problemáticos do racismo estrutural se fazem presentes de forma nociva – e estranhamente atemporal – como sempre.
Gürsoy Doğtaş é historiador da arte da Universidade de Artes Aplicadas (“Angewandte”) de Viena. Ele começou a escrever este artigo quando notou que o Museu Mumok de Viena, ao contrário de outros museus, não mencionou o nome da modelo Wilhelmina Ross, no título de uma pintura da série Ladies and Gentlemen – e que seu parceiro de cooperação QWIEN/Centro de História Queer nem sequer viu um problema nisso.
Tradução Raphael Daibert.