Acervo fotográfico dedicado exclusivamente às memórias fotográficas das populações negras, o Zumvi documenta há três décadas a história das populações afro-brasileiras.
Manifestação do povo de santo contra intolerância religiosa, 2019. Arquivo Zumbi. Foto. Lázaro Roberto.
Protesto do Movimento Negro contra o Centenário da Abolição, 1988. Arquivo Zumvi. Foto: Lázaro Roberto
Caminhada em homenagem aos 300 anos de Zumbi dos Palmares, 1995. Arquivo Zumvi. Foto: Lázaro Roberto.
Em 1988, durante o Ato de Memória do Centenário da Abolição, realizado na cidade de Salvador, um manifesto de denúncia e ativismo coletivo marcou aquele dia já emblemático. O pixo de um enorme sinal de anulação sobre a imagem da “Princesa Isabel” determinava que seu reconhecimento não era o de “libertadora” dos corpos escravizados, mas o de apoiadora, mantenedora e defensora da escravidão, e que o seu fantasma não poderia mais se manter rondando e assombrando os corpos que lutam por liberdade.
No protesto, frases de reafirmação, como “a princesa esqueceu de assinar a nossa carteira de trabalho”, foram estampadas em banners, cartazes e outdoors pela cidade – uma evidência de que os movimentos negros do período, mesmo reprimidos pela ditadura militar que havia terminado pouco antes e pelas tentativas de silenciamento social através da falsa ideia de democracia racial, não deixavam de existir e fazer história.
A marcha de 1988 foi documentada pelas lentes e olhares de Jonatas Conceição, jornalista negro que entendeu a importância de registrar aquele momento e de transformá-lo em memória histórica-visual. Hoje, esse material faz parte do Zumvi, um acervo dedicado exclusivamente às memórias fotográficas das populações negras.
Jovem negro com uma câmera na mão
O Zumvi surgiu em meados em 1990, a partir do trabalho de três jovens artistas periféricos: Lázaro Roberto, Ademar Marques e Raimundo Monteiro. Segundo Roberto, fundador e diretor do projeto, os três começaram fotografando manifestações culturais e artísticas de Salvador, onde viviam. Anos depois, devido às dificuldades enfrentadas em ser negro e trabalhar com fotografia, Marques e Monteiro se afastaram do projeto.
Roberto seguiu, mas relata que não foi fácil, visto que a experiência de jovem negro fotógrafo não é notada com naturalidade pela sociedade brasileira. Suas primeiras experiências foram marcadas por olhares assustados de pessoas ao vê-lo com uma câmera na mão: eram expressões de “surpresa e interrogação. Como pode uma pessoa negra jovem periférica ser profissional da fotografia? Provavelmente era essa a pergunta por trás daqueles olhares”.
Passeata contra a farsa da abolição no Brasil. Praça Municipal, 1988. Arquivo Zumvi. Foto: Jônatas Conceição.
Até hoje, a fotografia continua sendo um campo elitista e racista e, não por acaso, agências e espaços artísticos dedicados a ela dificilmente contratam profissionais negros. Nesse sentido, o Zumvi se destaca como exemplo de atuação fora dessa lógica defensora e mantenedora do racismo e suas estruturas. Em mais de três décadas de existência, o Arquivo reuniu cerca de 30 mil itens, entre material físico e digital (fotografias, documentos, cartazes, objetos pessoais), de autoria dos seus membros e frutos de doações de outros fotógrafos.
Todo o material está organizado e armazenado de maneira independente na casa de Lázaro Roberto. Segundo ele, o Arquivo precisa de maior apoio na preservação desse material: “Além do papel do Estado e do fomento através de políticas públicas de conservação e salvaguarda de acervos privados, eu gostaria que também os militantes do Movimento Negro fossem mais ativos nessa minha pauta pela memória imagética negra”.
Aquilombamento: modo de ser e estar no mundo
Como agrupamento pioneiro de profissionais negros na fotografia, o Zumvi sempre apostou em um modo de viver que marca as trajetórias das populações afro-brasileiras e diaspóricas: o aquilombamento. Tema de estudo de intelectuais como Beatriz Nascimento e Abdias Nascimento, entre outros, o ato de se aquilombar não é apenas um modelo de resistência, mas sobretudo um modo de ser e estar no mundo.
Manifestação para aprovação da política de cotas na Universidade Federal da Bahia, 2005. Arquivo Zumvi. Foto. Lázaro Roberto.
Ao servir de ponto de convergência, o Zumvi desafiou, portanto, as premissas de uma sociedade estruturada no apagamento e na subestimação dos profissionais e dos corpos negros, firmando o direito de pessoas negras se eternizarem em imagem e memória, tornando-se sujeitos de suas vivências. As contribuições do Arquivo são múltiplas: um exemplo é o surgimento de outros coletivos semelhantes, entre estes o Afrotometria, que reúne desde 2018 fotógrafos negros na cidade de São Paulo. “No campo da autoria negra, vejo um cenário promissor. Esses jovens fotógrafos vêm cada vez mais trazendo olhares que focam as questões raciais brasileiras”, observa Roberto.
Outdoors em FRESTAS
A atuação coletiva, política e artística do Arquivo Zumvi integra os debates da terceira edição de FRESTAS – Trienal de Artes 2020/2021, que acontece no SESC Sorocaba, com curadoria de Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula. A participação do Arquivo se dá, entre outros, através da apresentação de fotografias em outdoors – escolha, diga-se de passagem, estratégica dos movimentos negros em décadas anteriores.
Buscando vias alternativas de financiamento, o Zumvi abriu recentemente uma campanha virtual de apoio financeiro e busca construir uma rede permanente de suporte. Todos os interessados estão convidados a entrar em contato com o Arquivo através do site e das redes de comunicação do grupo. “Empenhar-se na manutenção das memórias é caminho para uma sociedade mais consciente e comprometida”, resume Lázaro Roberto.
Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. É mestra em História da Arte pela Universidade de Salamanca (USAL, Espanha, 2018) e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, 2019). É colaboradora de conteúdo da Diáspora Galeria e docente no Departamento de Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina.